O sacrifício da rainha e o Efeito Coringa
Alceu A. Sperança
O enxadrista cazaque Rashid Nezhmetdinov venceu uma partida espetacular contra o grande mestre russo Oleg Chernikov em 1962 sacrificando sua dama (https://x.gd/bOT1n).
Pedir a quem joga xadrez para sacrificar a dama é propor briga, mas na capital paulista, uma das cidades-municípios mais importantes do mundo, a dama (Pablo Marçal) se sacrificou cometendo um crime (divulgando um atestado falso contra um adversário).
Dizem que se passasse ao segundo turno em lugar do prefeito Ricardo Nunes perderia para o desafiante Guilherme Boulos, de acordo com todas as projeções.
Correndo o risco de condenação à inelegibilidade por oito anos, Marçal se deixou enforcar pelo documento fraudado e abriu caminho a uma possível vitória de Nunes, caso o prefeito não seja cassado nem fique também inelegível nessas que são as eleições mais mentirosas e traiçoeiras da história.
Uma grande bagunça, mas ainda pior é o Efeito Coringa. Homem violento e irônico em busca de vinganças contra outro vingador (Batman), o Coringa aposta na identificação com os pobres e miseráveis a ponto de se tornar um ídolo para os desajustados e excluídos.
Sob o governo dos bandidos
É assim que um bandido, ao construir fama heroica para disfarçar seus crimes, ao ser preso detona uma onda de iradas e violentas manifestações contra a polícia e a Justiça, em clara ameaça à civilização capitalista.
Ninguém pense que se esteja tratando aqui da condenação de Lula ou da suposta ordem de prisão que Pablo Marçal disse haver contra o ex-presidente Bolsonaro (que prometeu reagir atirando para matar).
A distopia de bandido apoiado pelo povo vem, na verdade, das cenas finais do filme Coringa (Todd Phillips, 2019). Nelas, o descarado criminoso desponta como um líder popular disposto a vingar o povo de toda a sacanagem imposta pelo "sistema", ou seja, a civilização capitalista vigente.
Um passo já dado para o banditismo realmente tomar conta das nações ditas democráticas é a desmoralização dos políticos: ao se agredir, trocar ofensas e inventar provas fraudadas contra os inimigos, eles desmoralizam-se mutuamente.
Com isso, além da enorme abstenção, a proporção de votos nulos aumenta com a divulgação falsa de números dos candidatos: cerca de 50 mil eleitores de Boulos deixaram de clicar o número certo (50) para apertar 13. Caíram na mentira disseminada por pablistas-marçalistas de que o candidato do PSol (50) era 13, que na verdade é o número do PT. Número errado, voto anulado.
Diplome-se o Sr. Nenhum Deles
No fim das contas, o placar verdadeiro do primeiro turno em São Paulo foi este:
Nenhum candidato - 3,1 milhões de ausentes, nulos e brancos;
Ricardo Nunes, apoiado pelo governador Tarcísio de Freitas e pelo ex-presidente Jair Bolsonaro - 1,8 milhão;
Guilherme Boulos, apoiado pelo presidente Lula da Silva e pelo PT - 1,7 milhão;
Nunes ou Boulos, um será diplomado prefeito, mas esses números desmoralizam as eleições. O desinteresse pelos candidatos, com permissão constitucional a todos os partidos de lançarem seus melhores representantes, significa que o modelo faliu.
Desse mato não sai coelho, mas saiu um monstro, a crescer desde 1988: o Centrão, que moldou a Constituição e a legislação complementar ao seu feitio, para que o poder se concentrasse nele, o bloco das emendas, jeitinhos e aditivos.
Por isso nunca houve um "governo Bolsonaro" (que esbarrou nas "quatro linhas da Constituição") nem há um "governo Lula" (desde 2003 incapaz de cumprir a pauta do PT). Nem haverá qualquer governo pós-Lula, pois a realidade brasileira é um solerte semipresidencialismo semiparlamentarista, com a cara cuspida, escarrada e tóxica do Centrão.
A fórmula mágica do poder
É fácil ver atrás da manhosa discurseira deus-pátria-família as regras do jogo preparadas para que o Centrão saia sempre mais forte de cada eleição, provando outra vez a ingenuidade do hoje silencioso general Augusto Heleno, que um dia, com entusiasmo, gritou: "Se gritar pega Centrão..."
Só que o Centrão é que pegou a todos. Se o general não declarasse a guerra perdida ao Centrão, seria para sempre lembrado só como um dos mais importantes heróis da ONU e não pelo erro de análise sobre a divino-maravilhosa política pátrio-familiar.
Quem tirar um tempo para saborear a partida em que Nezhmetdinov venceu sacrificando sua dama diante do grande mestre Chernikov conseguirá entender melhor o que é a política brasileira, na atualidade: quem perde agora vence depois e o Centrão ganha sempre com os dois.
Em Cascavel, o Centrão domina as representações federal e estadual, além da Prefeitura. Na Câmara Municipal, controla "só" 97%.
Convite para enterro
Cumprimos o doloroso dever de comunicar a morte da imprensa. Jornalista morto condenado a pagar indenização milionária por exercer o direito à livre expressão serve de jurisprudência impudente e necrófila: https://x.gd/6BxbQ. A Censura venceu, a mordaça virou lei. (Ilustração: Mescla)
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br