Voto, arma travada e sem munição
Alceu A. Sperança
O Ministério da Saúde deveria advertir que ter amigos pode fazer mal à saúde no caso de, no futuro, sabendo tudo a nosso respeito, endoidarem e virarem inimigos. Que os anjinhos não permitam ilações com o caso Roman x Paranhos.
A política brasileira morreu de más práticas, sobretudo a mania dos líderes políticos de trocar de partido como quem troca de camisa, de fundir partidos que até a véspera eram adversários, de líderes e filiados não terem o menor pudor de trair princípios, compromissos... e amigos.
Para reduzir o Brasil ao microcosmo de Cascavel, observa-se que todos (ou todes, como alguns gostarão) os candidatos a prefeito não concorrem pelas siglas nas quais iniciaram sua vida política. Pulam de galho e até celebram estranhas parcerias.
Edgar Bueno sempre alternou entre o social-democrata PSDB (centro-direita) e o trabalhista PDT (centro-esquerda), mas já se coligou com PMDB, PT, PSB, PL, PSC, PPS, PHS, PST, PSL, PSD, PSDC, PTN, PMN, Prona, PTB, PMN, PT do B, PRP, PRTB, PRB e, ufa!, PR. Um sopão de letrinhas.
Renato Silva começou no PP e seguiu por PMDB, PDC, POR, PPB, PSDB e atualmente o direitista PL, mas já se coligou também com PTB, PSL, PSC, PFL, PAN, PV, PSDB e até socialistas.
O neoconservador Márcio Pacheco transitou do PPL, antigo MR-8 hoje absorvido pelo PCdoB, para o atual PP, depois de passar pelo Republicanos e ter coligações antigas com PT, PRB, PCdoB e PDT.
Liliam Farias Porto Borges, por sua vez, pulou do PCdoB ao PT, pelo qual é candidata a prefeita, coligada com o PV e o PCdoB. É a menor sopa.
Máquina se toca sozinha
Impossível encontrar coerência ideológica ou de princípios nessa mixórdia, sequer na professora Liliam, que saiu do PcdoB em um racha ruidoso e agora se coliga com o partido de onde saiu, em perdão mútuo.
Em todo o caso, neste século nunca se viu um prefeito de Cascavel seguindo os ditames da agremiação pela qual se elegeu, o que configura um estelionato geral: o eleito vira as costas para o partido e o partido não tem como cobrar coerência porque também não é coerente. Além disso, cassar um prefeito por inoperância, troca de partido ou traição a princípios é impossível.
No fundo, pouco importa a eleição, pois hoje a Prefeitura de Cascavel é uma máquina que anda por si só. Você pode trocar o prefeito e os secretários e ela funciona com suas próprias regras, regulamentos e leis.
Se o prefeito e o secretariado se metem em maracutaias é por fora desse regramento, tendo que se explicar pessoalmente com a Justiça. De resto, se a máquina administrativa relaxar por ação ou omissão própria, do prefeito ou secretários, o Ministério Público lhe cai em cima e aciona a Justiça.
Bolsonaristas decepcionados
Já os vereadores não resolvem nada. Limitam-se a perfumarias, puxações de saco para reproduzir o mandato e homologação ao que já vem mastigado do Paço Municipal. As eleições municipais, no fundo, são apenas rituais no calendário, pois funcionam como rezas antes da cirurgia: sempre haverá a certeza de que sem a cirurgia as rezas seriam insuficientes.
Dom Pedro II, em seu tempo, já dizia: "As eleições, como elas se fazem no Brasil, são a origem de todos os nossos males políticos". Veio a República e elas continuam um espanto de incoerência, traições e reversão de expectativas.
Aliás, o exemplo municipal de máquina pública já estratificada também vale para o Estado e a União. É comum ver bolsonaristas frustrados se perguntando por que seu ídolo não fez o que prometeu em quatro anos de governo.
Não fez porque as "quatro linhas da Constituição" não permitiam, a Justiça não aceitava e os militares, profundamente legalistas, já não avalizam golpes de Estado. Sabem que eles só arruínam a máquina pública sem mudar os maus costumes - a República até os piorou e a última ditadura deixou o legado (ou passivo) de décadas perdidas.
No mais, é preciso ser muito desinformado para não saber que o regime falido do 1º de abril, general Golbery do Couto e Silva à frente, incentivava Lula enquanto boicotava Brizola. Lula, aliás, sempre entre tapas e beijos com o Centrão.
E assim, depois da ditadura morta via suicídio, votar só serve para referendar o poder do Centrão e o ampliar a cada dois anos, ou seja, a cada eleição.
Venezuela tem eleição a toda hora
Mas não dizem que o voto é a arma do cidadão? Só se for uma arma travada e sem munição, impossível de ser destravada e municiada, pois usá-la a cada dois anos para engordar o Centrão não muda nada.
Com o voto, hoje, vale o enjoadinho poema de Vinícius de Moraes sobre filhos: "Melhor não tê-los... Mas se não os temos como sabê-los?"
Melhor tê-las, as eleições, porque se não as tivermos cairemos no inferno da ditadura. É melhor se exercitar na esteira que se move sem você sair do lugar que enfrentar malucos armados virando a mesa com raiva assassina.
Só que haver eleições também é um jeito malandro de disfarçar regimes autoritários. No regime parlamentarista, eleições estão associadas a crises: deu ruim, convoque-se a eleição. Na Venezuela há mais eleições que no Brasil. E daí?
O fato é que chegamos a um ponto da história humana em que manter o status quo soa melhor que mudá-lo, já que a situação mundial é de governos cada vez piores, mais autoritários e dominando nossas vidas com a tecnologia, sem dar a mínima para a "arma" do voto (https://x.gd/T4IE1).
Não vai resolver grande coisa ir uma ou duas vezes às urnas, em 6 e 27 de outubro, mas cada um de nós precisa e merece refletir até que ponto seu voto é capaz de causar algo melhor além dos velhos tombos e decepções sentidos até agora. Pelo resultado prático, votar é mais um dever chato que um direito gostoso, mas, viva Vinícius!, é melhor tê-los. (Ilustração: imagens viralizadas)
Alceu Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br