O Estado brasileiro é um filme de terror
Alceu A. Sperança
"O que é que eu vou fazer/Com essa tal liberdade?" - Chico Roque e Paulo César Valle.
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O bolsonarismo prestou o inestimável serviço de acabar com o poder do presidente da República. Ele hoje se limita a falar pelos cotovelos e a esperar que o Congresso (domínio do Centrão) e o Poder Judiciário (tradicionalmente formado pelas elites nacionais) não decidam o contrário do que pregou na campanha eleitoral.
O que ficou de melhor do bolsonarismo no poder é a louvação da liberdade, ideia-força que todos ou defendem ou vão polir grades de ferro.
Nada estranho, é nos presídios, palácios e mansões em que os corruptos tramam e cometem crimes hediondos que se levanta mais alto o clamor pela liberdade, para que nunca sejam presos nem punidos. Se forem, que sejam logo libertos para voltar a reinar.
Só que a liberdade não é um monociclo, veículo de uma roda só. Os revolucionários franceses, sabiamente, já a ligavam à igualdade e à fraternidade para compor o tripé da democracia.
Sozinha, porém, a liberdade é só umslogan publicitário: como não existe uma só pessoa que se oponha a ela - os ditadores loucos e desumanos só revelam seu ódio à liberdade quando chegam ao poder -, pode-se falar nela o tempo todo sem receio de encontrar opositores.
Utopia democrática
Note que se você defender só a igualdade será ridicularizado, pois é óbvio que mesmo insetos apresentam diversidades entre os integrantes de suas colônias - o que seria das formigas sem suas rainhas, sentinelas, operárias e enfermeiras?
Quem defende só a fraternidade ou só a sacrossanta família ficará falando sozinho após uma tensa e aguerrida disputa por herança repleta de insultos, impasses e ganância entre irmãos, filhos, sobrinhos e netos. Defender a família sempre soa muito falso nesse caso.
Defender as três juntas - liberdade, igualdade e fraternidade - não passa, hoje, de uma utopia democrática sem muitos defensores.Até a liberdade já não tem mais tanto apelo. Na canção "Essa tal liberdade", Paulo César Valle abriria mão desse valor pelo retorno da mulher amada.
Há quem já renuncie abertamente a ela por ter fome, como um homem que se apresentou como "Bob Esponja" ao quebrar uma janela do 19º Batalhão da Polícia Militar, em Teófilo Otoni (MG).
Ele pediu para ser preso pelo delito porque não aguentava mais viver solto nas ruas, bebendo e roubando. "É bem melhor dentro da cadeia. Estou querendo voltar [para o presídio de onde saiu], mas eles não estão querendo me levar", reclamou Bob Esponja, rejeitando o direito de responder em liberdade por danos ao patrimônio público.
O juiz de joelhos
Os mais ardentes defensores da liberdade, além dos presos e palacianos corruptos, são os que cometem crimes contra a honra e os resultantes de discriminação e preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.Agarram-se ao direito à "liberdade de expressão".
Com a viralização do semipresidencialismo ou semiparlamentarismo, você escolhe qual palavrão expressa melhor sua liberdade, o próximo passo do Centrão e do lulobolsonarismo em geral é pôr o Poder Judiciário de joelhos.
Terão inteligência suficiente para conseguir esse feito? O Estado brasileiro, com o presidente zumbi, o parlamento assombrado pelos monstros do Centrão e o Judiciário sob feroz ataque, acossado pelas traquinagens de seus próprios Gremlins, é um filme de terror.
É assustador, por exemplo, que em 2023, pela primeira vez em oito anos, o Brasil não alcançou a meta de ter 95% das crianças e adolescentes de 6 a 14 anos matriculadas no ensino fundamental (1º ao 9º ano) e um terço das crianças do país estejam fora de creches por falta de vagas. Pecado monstruoso de quem se considera patriota.
País de mortos-vivos
Como zumbis, um país à parte é formado por 11 milhões de jovens que nem estudam nem trabalham, equivalendo à população da Bélgica. Obrigados ao empreendedorismo compulsório de se virar para não sucumbir, 35% dos jovens de 15 a 18 anos estão fora da escola.
No rol de empregos oferecidos na Agência do Trabalhador, há muitos empregos de auxiliar ou assistente disto ou daquilo oferecendo baixos salários e a missão de serem paus pra toda obra.
Aí um cara gastando forte, bancando caras e bocas, acena com uma tarefa de esforço zero e família toda empregada. Ocrime organizado se robustece na ideia de que a verdadeira liberdade é não pagar imposto, não seguir as leis e fazer as próprias.
Se apanhado, ameaça e tenta desmerecer o juiz com ofensas e calúnias.
Quando morrem a tiros, no trânsito ou nas drogas jovens pobres, periféricos e negros, há desavisados achando que isso é bom, porque "limpa" o país de gente inútil. Achismo inútil, pois não passa de uma limpeza sujíssima: os mortos logo vão fazer falta ao país.
Muitos jovens presos, mortos ou mutilados desonram um país e causamsua desgraça. País decente e patriótico teria tratado deles desde o ventre da mãe até o diploma e a garantia de emprego.
O futuro vai cobrar
A ausência de tantos jovens mortos, que deveriam estar vivos, estudando e trabalhando, vai logo afetar a produtividade da economia nacional. Haver tantas crianças e jovens desassistidos por políticas públicas efetivas é um fato aterrorizante.
Clubes de visão, dos quais o mais saliente é o Palmeiras (SP), investem na saúde, na educação e em produzir um bom futuro para alguns pouco escolhidos: os meninos bons de bola, que vão virar Endricks, Luíses Guilhermes e Estêvãos.
Quem maltrata a coitadinha, sem receber a alimentação, preparo físico e social, corre o grande risco de virar fantasma nos embates da vida, que não oferecem troféus nem medalhas.
O terror está aí, à vista de quem conseguir enxergar. É preciso sair das bolhas para ver tanto horror como consequência das incapacidades, omissões e malandragens dos embolorados que as bolhas cultuam e veneram como deuses na Terra. (Ilustracáo: Mdescla)
Alceu A. Speraca é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br