Salvaram a democracia e mataram o presidente
Alceu A. Sperança
(Este artigo é dedicado à memória de Hilmar Adams -1944/2024)
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"São as circunstâncias que governam os homens, não os homens que governam as circunstâncias" (Heródoto).
Um dia o Brasil talvez reconheça o maior feito do capitão reformado Jair Bolsonaro no exercício da Presidência da República: salvar a democracia. Também será preciso reconhecer seu segundo maior feito: matar o presidencialismo.
Bolsonaro e fiéis seguidores compartilharão os méritos pela salvação da democracia com os eleitores em geral, porque a maioria ainda acredita em eleições como forma de renovação das gestões públicas.
Méritos, também, dos freios e contrapesos da Carta de 1988, que fortaleceu o Poder Judiciário. Até da supremacia tosca e fosca do odiado Centrão, única força capaz de baixar a crista dos raivosos extremistas no Congresso.
A contribuição de Bolsonaro et alia para a salvação da democracia foi dupla. Primeira, a reafirmação de penas severas para os loucos que pretendem ditaduras. Segunda, fez de tudo para hackear as urnas, melhor forma de testar seu valor e qualidade.
As urnas escaparam sem arranhões e a institucionalidade predominou, derrubando em poucas horas o golpe toscamente desenhado em minutas. As mal traçadas linhas até seduziram incautos, mas não iludiram forças suficientes para golpear o Estado democrático.
Bolsonaro expôs a todos - até vigiou um montão com o aparelhinho espião de Israel - e assim foi possível apanhar centenas de criminosos.
O verdadeiro golpe foi dado
Não são conquistas triviais. Sua importância aumenta quando se pensa sobre elas: nunca mais haverá bocós terraplanistas e ETógos acampando diante de quartéis, pois não é liberdade de expressão - é crime - clamar por intervenção militar contra o Estado democrático de direito/a.
Ficaram sabendo que os militares têm honra e sempre vão cumprir a Constituição. Jamais se deixarão levar pelo canto da sereia de plantão nem pela sedução das vivandeiras que produzem provas contra si mesmas.
Prolongar os acampamentos antidemocráticos resultou em desmoralização e cadeia. O verdadeiro golpe, no fim das contas, foi dado, não importa qual seja a decisão final da Justiça: ele desabou sobre quem, desavisada ou ingenuamente, acreditou que os militares iriam trair a Carta Magna e perder a honra.
O castigo para isso estava desenhado desde 1940 no Código Penal e ficou ainda mais rigoroso por obra e graça de Bolsonaro. Está exatamente aqui o mérito de Bolsonaro na salvação da democracia:
Art. 286 - Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade. (Incluído pela Lei nº 14.197, de 2021).
Uma questão de Justiça
Sejamos justos: a lei 14.197 não foi criada por nenhum Xandão. É assinada por Jair Bolsonaro, Anderson Torres, Walter Braga Netto, Damares Alves e Augusto Heleno. Merecem medalhas.
Há um gentil clima de generosidade no ar: no passado, os opositores do regime eram julgados nas masmorras pela polícia política, com penas sumárias de torturas, pau de arara e choques elétricos. Ali não havia togados.
Hoje, em lugar da tortura, direito à defesa e penas definidas pelo Código Penal. Em vez de choques e espancamentos, multas.
No mais, o golpe foi toscamente preparado, um claro esquema pega-trouxa. Só caiu quem não desconfiou que era uma arapuca para apanhar malucos.
Só por ignorância ou falta de confiança na capacidade do Estado democrático de coibir a apologia de crime seria possível acreditar num arranjo tão desorganizado.
Pois, afinal, a tentativa de abolição violenta da democracia está cominada no Art. 359-L: Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena - reclusão, de 4 a 8 anos, além da pena correspondente à violência.
Golpe contra governante eleito também é desgraça na certa: Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: Pena - reclusão, de 4 a 12 anos, além da pena correspondente à violência.
Tesouro e tesoura
E os acessos de raiva contra as urnas eletrônicas?
Interrupção do processo eleitoral - Art. 359-N. Impedir ou perturbar a eleição ou a aferição de seu resultado, mediante violação indevida de mecanismos de segurança do sistema eletrônico de votação estabelecido pela Justiça Eleitoral. Pena - reclusão de 3 a 6 anos e multa.
De onde se conclui que o próprio governo Bolsonaro avalizou a regra de punir quem promoveu acampamentos diante dos quartéis incitando os militares a instituir uma ditadura. Os acampamentos criaram animosidade entre as Forças Armadas e delas contra os poderes constitucionais e as instituições civis.
As quatro linhas são maiores do que supõe a vã imaginação dos pescadores em águas turvas, Horácio.
Só que o presidencialismo acabou. Depois do mandonismo bolsonarista, os excessos do presidente que o Centrão não podar, a Justiça poda.
O presidencialismo subiu no telhado nos escândalos do Mensalão, Correião, Petrolão etc e agora se estatelou no chão.
De onde se conclui que o poder, antes dominado pela mão no tesouro, agora é controlado pela tesoura. Heródoto avisou que os homens não governam as circunstâncias. (Ilustração: Mescla)
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br