Aborto, céu, inferno e governo violento: bem-vindo a 1924!
Alceu A. Sperança
Ao contrário de avançarmos nas maravilhas do terceiro milênio, com vida boa e felicidade geral, regressamos a horrores de séculos anteriores que deveriam estar superados. Temas que neste terceiro milênio pareciam vencidos, limitados a mexericos da caquética ociosidade carola, teimam em se manter.
O céu para os bons e o Jesus salvador dos crentes podem até ser invenções da elite romana, como sustenta o teólogo americano Joseph Atwill, mas o temível inferno, que se supunha conto de bicho-papão, não só existe como está disponível agora mesmo, via satélite.
A cratera Batagayka, na República da Yakútia (russo-siberiana), tem um quilômetro de comprimento, resultante do desmatamento. A terra afundou por conta do aquecimento local, ali 2,5 vezes mais rápido do que no resto do mundo.
Batinha, para os íntimos, não para de aumentar e já é conhecida como a "porta do inferno". Mas nem seria preciso abrir esse buração assustador, já que a existência do demônio acaba de ser provada.
Em 1956, David Pines previu a existência de uma estranheza eletricamente neutra e, portanto, invisível à luz. O Demônio de Pines parecia impossível, mas acaba de ser achado por físicos da Universidade de Illinois (EUA).
Ora, se existe demônio, logo existe também o inferno, que além de ser os outros, como diria Sartre, é também uma obra governamental.
A ousadia do crime organizado no Equador deu de bandeja ao governo argumento para aplicar o terrível "estado de conflito armado interno", trazendo uma incômoda lembrança do que aconteceu no Brasil há cem anos.
Receita: piorar o País e cultivar o ódio
A iniciativa do presidente equatoriano Daniel Noboa é muito semelhante à atitude do presidente brasileiro Artur Bernardes em 1924, quando deixou a situação do país piorar a ponto de inspirar nos jovens militares o rancor que os levou a deflagrar o movimento tenentista.
O terrorista George Washington de Oliveira Sousa, preso na véspera do Natal de 2022, confessou que planejou no "patriótico" acampamento diante do quartel-general do Exército um atentado a bomba que consistia em montar um artefato explosivo em um caminhão de combustível estacionado junto ao Aeroporto de Brasília, com a intenção de causar o caos e provocar a decretação do estado de sítio.
O esquema é simples: deixar o país piorar para a sociedade reagir com fúria. Corrupção, desigualdade, ineficiência governamental, parlamentares que se vendem por emendas piores que os sonetos e Justiça injusta são fermentos espetaculares para inflar a rebeldia
Com raiva, o povo vota em malucos. Aí a gestão piora, a raiva vira ódio e a "casta", como diria o vizinho Mister M, justifica ações violentas de controle da sociedade.
Controle violento da oposição, claro, porque os adeptos dos malucos sempre vão aplaudir seus bandidos de estimação. Então a dívida pública aumenta na mesma proporção da dívida social, afetando a saúde mental coletiva. Viva Simão Bacamarte!
Ter filhos, sim, é patriotismo
Papo de aborto Já não faz sentido a essa altura. Tirando a hipocrisia de quem ainda debate isso, é uma questão vencida porque só pobres o praticam e se arriscam à prisão.
A zelite sabe como é fácil dar um jeito cirúrgico na cria entre uma e outra viagem de turismo ao exterior. Mas abortar virou falta de patriotismo, porque hoje toda nação esperta cultiva o princípio "crescei e multiplicai-vos".
Todos os governos decentes sabem que gente é o maior bem de uma sociedade e por isso ter filhos é ter tesouros magníficos. Por que abortar um serzinho que logo valerá uma fortuna para a sociedade e o Estado?
Na China, ter filhos é política de Estado e dá prêmios. Mesmo um dos líderes nacionais mais cruéis, Kim Jong-Un, da Coreia do Norte, até chora quando fala em bebês. Em dezembro, na 5ª Conferência Nacional de Mães, em Pyongyang, ele implorou que as mulheres coreanas tenham mais filhos.
Sabe que no Sul o governo está alarmado com a queda na taxa de fertilidade, que até 2025 cairá para 0,65 por mulher, quando seriam necessários pelo menos 2,1 nascimentos por mulher.
O mundo começa a amar as crianças e os jovens como jamais amou antes. Menos, ainda, no Brasil varonil.
Vidas jovens importam?
Segundo a Sociedade Brasileira de Salvamento Aquático (Sobrasa), 15 brasileiros morrem afogados por dia, quase todos jovens e crianças.
Crianças brasileiras morrem antes de virar jovens por ter mães analfabetas, desnutridas e desassistidas. Jovens morrem na droga, no trânsito e na bala: mais da metade homicídios no Brasil em 2021 eram jovens de 15 a 29 anos.
Se não morre logo ao nascer, o pimpolho vai sofrer em seguida se não achar vaga em creche e pré-escola até os 5 anos, porque corre o risco de ficar retardado em relação aos que tiveram assistência educacional no devido tempo.
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) alerta que mais da metade das crianças do segundo ano do Ensino Fundamental da rede pública brasileira ainda não aprenderam a ler e escrever.
Deu-se que 56% dessas crianças não foram alfabetizadas na faixa etária esperada e dá-se que o analfabetismo funcional entre os adultos em geral é uma das grandes desgraças brasileiras.
A Argentina ainda chora por Evita, mas no Brasil devíamos chorar por não evitar que as crianças brasileiras deixem de ser o futuro da nação por ficar sem futuro. (Ilustração: Mescla)
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br