Insuportável 1%
Rafael Queiroz e Conrado Mendes
"Insuportável perda monetária" foi a dor manifestada por associações de juízes para propor reajuste de 16,3% aos seus próprios salários. O índice constará da proposta orçamentária a ser enviada pelo STF ao Congresso.
Ressaltaram que essa seria uma "janela política" para o aumento. O espírito é aproveitar o fim de mandatos parlamentares e o cenário de terra arrasada das finanças públicas.
A revisão anual é prevista na Constituição (artigo 37, X), e não apenas aos juízes. Como o texto constitucional também ordena despesas em tantas áreas socialmente sensíveis, cabe ao Congresso Nacional decidir como podem ser atendidos todos os pleitos sobre o orçamento futuro - da remuneração de magistrados e procuradores aos investimentos em saúde, educação, segurança pública, combate à miséria etc.
O pleito de reposição dos juízes, ao qual se soma agora o de membros do Ministério Público Federal, deveria ser submetido a um juízo de viabilidade fiscal e de justiça.
Não basta invocar índices inflacionários ou normas que ordenam revisão. O cobertor orçamentário é curto para tudo o que a Constituição determina. É consequência necessária do aumento salarial dos juízes que sobrem menos recursos para outras tarefas do Estado - inclusive na melhoria da própria prestação jurisdicional.
Policiais, médicos e professores também experimentaram perda salarial, segundo notícias recentes. Áreas estratégicas, como ciência e tecnologia, correm risco de colapso por cortes orçamentários. Bolsistas de mestrado e doutorado padecem da mesma falta de recomposição inflacionária ?com a diferença de que o valor médio mensalmente gasto com a remuneração de um magistrado, segundo o CNJ (R$ 47,7 mil), paga muitos meses de salário para quaisquer dessas outras profissões.
Mesmo com a alegada defasagem, juízes permanecem com folga no cume da pirâmide salarial brasileira: estão entre os 1% mais bem remunerados do país. Como o teto, nas carreiras judiciárias, é uma ficção jurídica, o patamar real de remuneração média de magistrados os coloca ainda mais acima.
Se a remuneração das carreiras públicas merece zelo, o quadro de sofrimento pintado pela magistratura, no contexto brasileiro, é indecoroso. Só é capaz de apelar a esse sentimento quem perdeu a capacidade de enxergar a desigualdade que o beneficia. Daí a mandar que o povo, na falta de pão, coma brioches é um passo curto.
O dado mais perverso do caso brasileiro reside em nosso desenho institucional para a tomada dessa decisão: a proposta será incorporada ao Orçamento a partir da decisão de parlamentares que se valerão, eles próprios, do reajuste concedido para defender igual vantagem para si. Historicamente, deputados e senadores empatam seus vencimentos com os dos ministros do STF. O Ministério Público vem logo atrás.
As remunerações de carreiras estatais no Brasil são determinadas pela lei do mais forte, fora do debate democrático. Associações de magistrados sabem jogar essa baixa política com maestria.
A gastança adquire contornos mais cruéis no cenário atual de Orçamento comprimido pelo teto de gastos. Dada a escassez de recursos, escolhas orçamentárias são trágicas. Aqui, quem faz as escolhas não viverá a tragédia: ela aparecerá para a população que sofrerá com serviços públicos sucateados, indicadores de saúde em queda, segurança sem fôlego para investimento, infraestrutura pública precária.
Há algo de insuportável nisso, de fato; mas não se trata da vida do 1%.
Rafael Queiroz e Conrado Mendes são professores da Faculdade de Direito da USP