Confira se você é dono do mundo. Provavelmente é!
Alceu A. Sperança
O presidencialismo é progressivamente assassinado em todo o mundo pelas ações loucas dos presidentes eleitos.
No passado, havia a ilusão de que eleger o "menos pior" no segundo turno apresentaria o risco mínimo e suportável de manter os valores democráticos básicos, mas nem isso já é garantido.
A tendência, nesse caso, é que os demais poderes além do Executivo - o Legislativo e o Judiciário - criem e autorizem mais países a seguir o exemplo do Brasil: ter um Centrão, que ao controlar o parlamento possa negociar com o presidente, por mais forte que ele seja, a aprovação de medidas necessárias para a governabilidade.
O Centrão brasileiro é terrível, porque sua maioria tem origem em imenso estelionato eleitoral: os fundos partidários inflados pela corrupção do mensalão, petrolão, passagem da boiada etc.
O Centrão começou a se formar com o falso bipartidarismo imposto pela ditadura civil-militar (1964-1985). Juntando os moderados do MDB com os democratas da Arena, tomou corpo e chegou a constituir uma hidra de pelo menos 300 cabeças
Hidra que logo se impôs na também falsa Assembleia Constituinte de 1986, na verdade um impróprio Congresso com poderes constitucionalistas, malandragem que não faz o menor sentido, pois uma Constituinte deveria começar do zero.
De falsidade em falsidade, o Parlamento forjou a hidra, a mídia embarcou no conto de avançar com reforminhas possíveis para no futuro chegar às reformonas desejáveis, e assim a Justiça permitiu que o atual estado de coisas partisse de sistemas eleitorais viciados até consolidar o que aí está à vista de todos.
O Centrão é um estelionato, mas a Justiça...
Enfim, a situação é essa, e o único jeito de mudá-la é parar de acreditar na ilusão infantil de que a democracia se limita a eleições.
Democracia não é votar e lavar as mãos ou xingar alguém em redes sociais: é atuar no dia a dia para que a sociedade melhore, e isso passa também por refletir em como o voto dado para deputado federal foi parar no Centrão e deu no que aí está.
Basta verificar qual é o partido do candidato em quem votou, porque os votos somam todos para o partido ou coligação (atualmente federação de partidos).
Mesmo que o candidato votado não tenha sido eleito, o voto somou para definir os eleitos. Aí é fácil conferir se o partido votado faz ou não parte do Centrão.
Dito isso, caso seu voto foi parar no Centrão, então regozije-se: seu voto também governa o Brasi, pois só passa no Congresso, vira lei e a Justiça aceita o que o Centrão aprova.
Muito mais poder que só governar um país
Mas talvez você seja ainda mais do que um dos votantes avalistas do governo brasileiro. Talvez você também seja dono do mundo.
Sim, no caso de ter algum valor depositado em poupança ou em uma dessas financeiras que oferecem cento e tantos por cento do CDI e coisas parecidas.
Nunca antes na história do mundo alguém havia dito que investir na Bolsa, o templo do capitalismo, é um ato de amor. E aí o jovem Karl Marx rasgou elogios ao erotismo (impulso amoroso) e ao senso ético dela: na "bolsa de valores também é o amor que impera", escreveu ele, literalmente.
Ali, como cada investidor busca satisfazer o desejo de felicidade, isto significa, na prática, o amor.
Os séculos passaram e aí, num choque de realidade, percebemos que isso é pura verdade: investidores ostentam seus helicópteros, consortes com um terço da idade, jatinhos e mansões expressando a mais pura felicidade.
"Nas modernas sociedades capitalistas", escreve André Orléan em Le pouvoir de la finance, "os detentores do poder financeiro são, basicamente, os investidores institucionais, agentes capazes de reunir fundos de milhões de pequenos poupadores, anônimos, transformados em cotistas ou acionistas minoritários".
Democracia, amor e ética
Se a ficha não caiu e a chavinha ainda não virou, basta dizer que é balela tudo que andaram dizendo por aí sobre haver apenas alguns donos do mundo e se tocar que você também pode ser um deles.
Começando pela gestora de fundos BlackRock, você descobre que ela, a Vanguard, a Fidelity, a Morgan Stanley e outras do gênero administram fantásticos sacos de dinheiro formados pelas economias de dezenas de milhões de clientes dos grandes bancos e corretoras.
Você não seria um desses milhões de pequenos poupadores? Se for, é batata: além de seu voto governar o Brasil via Centrão, você também é um dos donos do mundo.
O dinheiro de sua economia faz parte desses sacos dinheiro e é você quem diz à corretora o que deve fazer com a grana. Isso, além de ser democracia, significa, segundo Marx, que você achou o amor, a felicidade, a ética e é, portanto, dono do mundo.
Nesse quesito, Marx venceu: as massas já tomaram o poder.
Sempre tem o problema de um louco ser eleito presidente, aqui ou alhures, mas o que seria a vida sem alguns sobressaltos inesperados? Aí você faz um meme dele, expondo-o ao ridículo, ganha curtidas de seus amigos e fica ainda mais feliz. (Ilustração: Mescla)
Alceu Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br