Gabiroba, fantasmas e fantasias reais
Alceu A. Sperança
Saiu o esperado livro Tempos de Gabiroba, de Luiz Carlos Schroeder, leitura que vai avançar a deliciosa experiência de Ewald, um alemão (ambos pela editora BesouroBox), seu livro anterior. Fantasias e realidades se misturam na imaginação, nos temores e surpresas ao transitar da infância para a juventude e no seguir em frente.
A delícia de descascar uma gabiroba no verão para saborear sua polpa se estende às demais estações do ano quando o sentido é figurado e vai se explicitando no avanço da adolescência.
O sentido figurado independe da fruta presencial na busca pelo prazer de viver. Descascar gabiroba funciona como rito de passagem, aprendizado, experiências de desfrute saudável.
Como são tempos de tensões, desafios e expectativas, muito do que os jovens silenciam e se oculta atrás das festas, baladas e cliques enlouquecidos nas redes sociais não é despreocupação, irresponsabilidade, apatia ou desinteresse pela realidade que os cerca, mas formas de convivência, buscas e transições.
Crianças e jovens escondem coisas que nem sempre são reveladas, pois até grandes e minuciosas memórias são traídas pelo curso do tempo. Anos depois fica até difícil entender por que fez tal coisa ou tinha tal costume. A saída é racionalizar, atribuir a excentricidade a algum parente ou amigo.
Não somos os mesmos nem vivemos como nossos pais
Se é verdade geral que nos termos de Tales de Mileto ninguém entra duas vezes num rio, já que depois da primeira vez nem você nem o rio serão mais os mesmos, a conclusão do sábio grego pode ser igualmente aplicada na vida de cada um.
Para o cineasta Steven Spielberg, "todos nós somos uma pessoa diferente a cada ano". Não continuamos a ser a mesma pessoa por toda a vida: a criança birrenta dá lugar a um menino quieto e estudioso que vira um adolescente rebelde, mas frente às necessidades da vida, por fim, chega a ser um adulto cumpridor de seus deveres.
Antes de nascer sequer existia e nunca foi o mesmo em cada etapa da vida. O namorado sarrista não será igual ao noivo anelado, nem este antecipa o marido barrigudo das bodas de cristal ou o viúvo mirrado e neurastênico depois das de ouro. Uma vida são muitas vidas.
Lendo Tempos de Gabiroba será impossível não identificar aqui e ali, apesar de as biografias serem sempre diferentes, momentos de perplexidade diante dos desafios da vida, angústias frente a divergências familiares, amigos que não se programam e vão acontecendo, sonhos fantásticos de amores frustrados, realidades imaginadas e vividas de formas diferentes.
Os pontos de contato entre biografias de quem escreve e quem lê podem ocorrer nos insights que repentinamente pulam na mente como coincidências incríveis, até nos fantasmas que aparecem, desaparecem ou influenciam a trajetória de cada um.
Há sentidos reais e não só fantasia ou imaginação no fantasma que enche a cabeça do moleque e depois desaparece num banhado. Um dia ele decidirá que sua obra estará completa, dela restando um ser humano adulto e desassombrado.
No que virou o fantasma de Marx
Um velho barbudo que sempre assombra nossas vidas falava sobre um espectro que apavorava os reis. "Um fantasma ronda a Europa", dizia ele, hoje didaticamente explicado pelos franceses Ronan de Calan e Donatien Mary no livro O Fantasma de Karl Marx, a ser lido sem medo.
Aquele fantasma mudou tanto nestes 200 anos que hoje virou a sinuca de liberais assombrados pelos capitalismos chinês e russo e pelos EUA quebrados em dívidas (quem diria!) "socialistas".
Menos mutável, o fantasma que acarinha um menino e o acompanha pela adolescência é tão cheio de conselhos, pressões e puxões de orelhas que inevitavelmente será entendido como uma presença genética e a bicicleta será a extensão dos pés ansiosos por ganhar distâncias.
Pessoas mentalmente sadias não relatam ouvir vozes em suas cabeças, mas existe em todos nós um streaming incessante que só não é fantasmagórico por ser vivo, real e presente. O diálogo interno jamais cessa, a não ser provisoriamente com truques momentâneos de atenção focada.
Disciplinar o fantasma que age em nossa mente em tempo integral e conflita com opções, escolhas, situações e realidades é uma das maiores dificuldades da vida. Mas nossos fantasmas pessoais também têm seu tempo e sempre irão para um banhado filosófico, existencial ou apenas como fecho de mais uma etapa da vida, que depois vai se desenvolver como novas escolhas e vozes.
Ler uma autobiografia, ainda que romanceada, repleta de metáforas e insinuações, é de certa forma revisar a própria história à medida que as coincidências vão aparecendo.
Onde fica a cidade de Cristo Rei?
Mesmo que não se conheçam fatos mais pessoais sobre o autor, sempre se entenderá que Cristo Rei é uma cidade do Oeste do Paraná com sua realidade de imigrantes, caboclos, gente muito trabalhadora às voltas com aventureiros de todos os tipos, comuns a qualquer região de fronteira. A Macondo de Schroeder.
As aventuras do narrador, a onipresença da morte e a pulsação incessante da vida se completam por uma explícita relação de livros que moldaram a consciência de uma geração (Germinal de Zola é uma espécie de exorcismo da inconsciência), partes à parte no livro Tempos de Gabiroba.
Mas há muito mais, ora insinuado, ora claro, à medida que a leitura transcorre. Como ler sempre causa influências, alguém vai adquirir a obsessão de colocar os lápis com a ponta para cima e as canetas com a ponta para baixo, mania recorrente do narrador.
No fim das contas, quanto mais distantes ficam as presenças dominantes de papai e mamãe, mesmo que tenham morrido ainda jovens, sempre serão fantasmas onipresentes a assombrar quem tem memória. Ou renovando desafios em tempos sombrios de incertezas ou trazendo a sombra refrescante das lições, convicções e certezas.
Quando o tempo da gabiroba passar, só restará esperar a nova florada, porque a vida sempre se renova e cada ano nos fará diferentes dos anos anteriores.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br