Aborto e morte
Mary Zaidan
As audiências públicas sobre a interrupção da gravidez promovidas pelo STF e a condenação da pena de morte, considerada inadmissível pelo Papa Francisco, jogam luzes sobre polêmicas que cedo ou tarde todas as sociedades, gostem ou não, têm de enfrentar. Melhor: o fazem sem terem sido provocadas pelo embate eleitoral, que, ao contrário de contribuir, fulaniza e reduz a pó a dimensão que o debate de ambos os temas exige.
No Brasil, aborto e pena de morte costumam ser reincidentes nas campanhas, não raro tratados com a profundidade de um pires e contorcionismos dos candidatos, normalmente entre o "pessoalmente" contra ou a favor. Longe de se debruçar sobre as questões, o objetivo é sempre o de criar constrangimento aos concorrentes.
Mas, com as audiências na Suprema Corte e as palavras do Papa, não haverá como correr deles.
Católico e "temente a Deus", como ele próprio se define, Jair Bolsonaro terá de contrariar o Pontífice e as mudanças no catecismo para manter a enfática defesa que fez da pena de morte - "se levar o cara para uma cadeira elétrica ele nunca mais vai matar nem assaltar".
O castigo letal esteve no discurso do também católico presidente Michel Temer, em 1988, quando, mesmo se dizendo "pessoalmente" contra, apoiou incluir na Carta uma consulta plebiscitária sobre a matéria, retomando a proposta em 2014.
O endosso popular para autorizar o Estado a matar não prosperou, embora frequente o imaginário da maioria.
Pesquisa Datafolha realizada em janeiro deste ano aponta que 57% defendem a adoção da pena capital, 10% a mais do que em 2008. E, em franca discordância com o Papa, 63% dos favoráveis se declaram católicos.
Análises simplistas levam a atribuir o resultado ao grau insuportável de insegurança, com multiplicação geométrica de homicídios. Pode até ser. Mas a provar o quanto o debate ainda é incipiente, não se fala do quão insano seria delegar o direito de matar ao mesmo Estado incapaz de proteger o cidadão.
A descriminalização do aborto, que em dezembro de 2016 era rejeitada por 64% dos brasileiros ouvidos pelo Datafolha, seguiu em linha inversa: reduziu para 57% em janeiro deste ano. E ganhou defensores entre grupos religiosos, como o aguerrido Católicas pelo Direito de Decidir, e entre evangélicos.
Mas também não se trata de agradar maiorias ou privilegiar minorias. O desafio é combinar ética e direito, razão e dignidade.
Por aqui, o aborto só tem guarita legal em casos de estupro ou risco de morte iminente da gestante, e, mais recentemente, de fetos anencéfalos. O que o STF analisa é a possibilidade de realizar o procedimento até a 12ª semana de gravidez, seguindo parâmetros de saúde pública adotados na maioria dos países ocidentais.
Fora da lei, mais de 500 mil mulheres interrompem a gravidez todos os anos no Brasil. As pouquíssimas que podem pagar a clandestinidade em clínicas especializadas, saem ilesas. A maioria se submete a métodos arcaicos, correm risco de vida e ainda podem ser condenadas a até três anos de prisão.
Candidatos vão ser instados a dizer se são contra ou a favor, repetir a cantilena do "pessoalmente". Mas, sem tirar nem por, para as mulheres pobres a criminalização do aborto é pena de morte.
Mary Zaidan é jornalista