Nós e os baianos tocadores de tambor
Alceu A. Sperança
O Rio Grande do Sul deve algumas de suas melhores tradições aos nordestinos. As charqueadas, que tanto capital renderam, começaram com as técnicas de lidar com gado trazidas pelo luso-cearense João Pinto Martins.
Depois viriam outros nordestinos, como os baianos para a vitivinicultura. Baianos, aliás, gratos aos gaúchos que foram lhes ensinar a produzir ótimo vinho em seus amplos parreirais.
É estúpido e desumano hostilizar nordestinos que vêm trabalhar no Sul, mas houve paranaenses que em diferentes momentos da história guardaram alguns ressentimentos com baianos.
Antes que algum irritadiço decida nos atirar um dobrão, a pedra que se usa para tocar o berimbau, fique claro que a mágoa não foi causada por trabalhadores, mas pela elite mais sábia da Bahia.
Começou com a frustração que os industriais do litoral e os fazendeiros dos Campos Gerais sentiram depois da criação do Paraná, em 1853.
Eles não tiveram autorização do imperador Pedro II para eleger ou pelo menos indicar alguém da terra araucariana para governar a Província.
Zacarias pregou a paz e foi fazer a guerra
Não tiveram permissão nem para escolher o nome da Província. Pela vontade do parlamento nacional, o Paraná hoje seria o "Estado da Coritiba".
A lei determinava criar a "Província da Coritiba", mas o inconformado litoral exigiu que o nome fosse "Província de Paranaguá", dando origem ao impasse.
Diante disso, a decisão salomônica de Pedro II foi dar à região o nome de seu superministro Honório Carneiro Leão, o Marques do Paraná.
Ninguém entendeu como "a Coritiba" de repente virou "o Paraná", mas vontade de imperador não se discute.
Nem se discutiu quem seria o primeiro governador. O baiano Zacarias de Goes e Vasconcelos, que ganhou o governo do Paraná como parte de sua viagem de lua de mel.
Zacarias governou o Paraná tentando semear a paz entre os grupos antagônicos, mas saiu daqui e foi governar o Brasil. Aí provocou a Guerra com o Paraguai, culminando com uma vitória de Pirro que deu início à fabulosa dívida nacional.
Comida boa para presos
Bem, mas pelo menos quando Zacarias foi embora os paranaenses (ou coritibanos) puderam escolher seu próprio governante, não? Não: em lugar de Zacarias veio o paulista Teófilo Resende.
Depois, mais um monte de paulistas alternados com um batalhão de governadores fluminenses que poucas lembranças deixaram, até que mais um baiano foi mandado para governar o Paraná, em 1857.
Francisco Liberato de Mattos, um juiz, encontrou o Paraná vivendo crise carcerária, com os presos revoltados exigindo comida boa, ingratos que nunca estão contentes, como os papudos do 8 de janeiro que foram parar na Papuda, em Brasília.
O orçamento das prisões para alimentação era tão baixo que nenhuma empresa quis fornecer comida aos detentos da Província.
Sem estrutura para prestar o serviço de hotelaria e uma verba diária de 200 réis para cada preso, o governo determinou à Santa Casa de Misericórdia, humanitária e sem foco lucrativo, a levar aos presos a comida quer servia aos doentes.
Os encarcerados dobraram as queixas quanto à comida. Xingavam mais os funcionários da Santa Casa que irritados tuiteiros de mal com o mundo.
O governador Liberato, liberal de nome e crença, resolveu dar fim à baderna dos presos criando um salário para eles. Assim poderiam escolheriam quem lhes fornecesse o manjar dos deuses que desejavam, já que a comida dos doentes da Santa Casa não servia.
Cada preso escolhendo o fornecedor, ninguém mais podia queixar da comida ruim servida pelo governo. Não se sabe porque, mas a criminalidade cresceu muito naquela época em que preso tinha salário.
Sancho, sócio de Rui Barbosa
Baianos ou não, os governadores vinham sem nenhum interesse, os problemas eram insolúveis por falta de recursos e ficavam no cargo semanas, no máximo alguns meses, e logo partiam sem sucessos a comemorar.
Em meio à grande dança de cadeiras entre paulistas e fluminenses, o imperador mandou mais baianos governadores depois de Francisco Liberato.
Vieram Antônio Afonso de Carvalho, Rodrigo Otávio de Oliveira (que não aguentou nem dez dias no governo) e ainda o soteropolitano Manuel Dantas Filho, que conseguiu ficar mais de um ano no ninho de cobras paranaense e quase limpou a barra dos baianos anteriores ao iniciar a construção da ferrovia Curitiba-Paranaguá.
O próximo baiano que governou o Paraná, Sancho de Barros Pimentel, era sócio de Rui Barbosa, aquele mesmo que viu os poderes se agigantarem nas mãos dos maus e por isso sentia vergonha de ser honesto.
Todos esqueceram os dissabores com os diversos governadores baianos do Paraná depois que Barbosa, ligado ao magnata estadunidense Percival Farquhar, levou o Paraná a sofrer a maior e mais traumática derrota de sua história.
Todo o Oeste atual de Santa Catarina pertencia ao Paraná. Só as ousadas explorações de desbravadores paranaenses naquela região já dariam um belo uti possidetis, mas Rui Barbosa levou a pior confrontando o catarinense Manuel da Silva Mafra e o Paraná perdeu aquela região.
Baianada é coletivo, não pejorativo
É cruel demais supor que o baiano Rui Barbosa tenha incentivado o Exército a massacrar os sertanejos revoltados com Farquhar e a República madrasta, mas o fato é que nem Zacarias, nem mais uma dúzia de governadores baianos, sequer Rui Barbosa, tocaram os tambores direitinho no Paraná.
Dirá o leitor que os políticos de outros estados que governaram o Paraná também atravessaram o fandango tamanqueando mal. E estarão certos.
Ter preconceito contra naturais de outros estados e países é estupidez e faz mal ao fígado. Cada qual vale pelos seus atos, que não podem ser atribuídos a parentes ou conterrâneos dos malfeitores.
Gaúcho bom comemora ter ensinado os baianos a produzir um excelente vinho, alavancando sua renda entre uma e outra festa animada por sedutores tambores. Irritados e ressentidos preferem ofender e discriminar, mas sempre sofrem consequências. (Fotos: Reprodução)
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br