O massacre dos patriotas e a bandeira traída
Alceu A. Sperança
A República jamais poderia considerar liberdade de manifestação gente se fingindo de patriota para promover depredações e vandalismo. Nem trajar a bandeira republicana como se fosse roupa ou capa de super-herói e usá-la como disfarce para ocupar ilegalmente prédios públicos.
Por fim, e até mais surpreendente, para espanto geral, arriar criminosamente o sagrado pavilhão nacional e em seu lugar içar a velha bandeira remanescente da opressora monarquia portuguesa, justo no ano do bicentenário da Independência.
Se isso é liberdade, a República vai acabar revogada.
Houve um tempo em que ela era ainda muito jovem e sem juízo. A República dos Marechais foi um período infeliz, em que a indisciplina corria solta nos meios militares.
Os presidentes da época eram chefes que se agrediam usando uns contra os outros as armas do povo brasileiro, essas que só podem ser usadas para a defesa nacional, não para servir a seitas e quadrilhas.
Naquela época de anarquia institucional, fanáticos religiosos, cheios de ódio contra a República, exatamente como os malandros do 8 de janeiro de 2023, também portavam bandeiras da monarquia, mas jamais chegariam a se disfarçar com símbolos nacionais para tomar e vandalizar os prédios da República, então localizados no Rio de Janeiro.
Naqueles tristes dias de 1915, com o mundo em guerra, como hoje está na Ucrânia, os fanáticos tiveram o que mereciam: foram severamente reprimidos pelas forças armadas, com o apoio das polícias estaduais.
Milhares de prisões foram feitas e os cadáveres dos mortos raramente conheciam o ritual de um sepultamento - ao todo, estima-se que foram mais de 20 mil mortos.
Mentiras tidas como verdade
Além de nunca chegarem perto de qualquer prédio republicano, os ferozes fanáticos foram inicialmente vítimas de fake news de fazendeiros que denunciaram o monge São João Maria como um perigoso agente de incitação dos sertanejos contra a exploração que sofriam.
Sem estudar bem a situação, por falta de inteligência e informação hábeis, enviaram tropas com a missão de prender e arrastar os rebeldes amarrados até Curitiba.
A repressão aos fanáticos, que se consideravam patriotas monarquistas, sedentos pela implantação de um reino teocrático no Brasil, começou como um vexaminoso fracasso.
No combate do Irani, em outubro de 1912, a metralhadora de estimação do comandante João Gualberto engasgou e ele foi massacrado pelos rebeldes, crentes animados pela fé em Cristo, nos santos e na volta da pátria monárquica.
O monge também morreu. Mas se os soldados continuaram os combates sob uma orientação militar menos amadora que a da força policial paranaense, os fanáticos religiosos, munidos de barras de farro, porretes, facas e garruchas artesanais, atacavam com a certeza de que o espírito do monge os liderava lá do seu estranho céu sectário para onde vão os loucos idiotizados que enfrentam forças policiais e militares.
Brasileiros contra brasileiros, vergonhoso fratricídio
Foi assim, entre bandeiras do Império, fanatismo religioso e ódio político, que o infeliz episódio do Contestado se encerrou em 1916, com o saldo trágico de milhares de patriotas mortos e muitos soldados igualmente patriotas trucidados por facões e punhais.
Dos muitos episódios vergonhosos da guerra entre pelados (os fanáticos, que nada tinham) e peludos (os chefes militares republicanos de barbas bem resolvidas e bigodes lustrosos), o mais triste, por ser a origem da tragédia, foi a facilidade com que fake news eram recebidas pelas autoridades como se fossem verdades, somente por serem expedidas por "gente de bem", como se pessoas honestas não pudessem ser enganadas por farsantes.
O fanatismo religioso, segundo elemento tristíssimo da guerra civil, foi uma resposta à arrogância do capital estrangeiro associado a prepostos do Paraná e Santa Catarina que esbulharam os sertanejos por décadas a fio, tomando-lhes terras, o fruto de seu trabalho e até a possibilidade de trabalhar.
Culminou pelo episódio mais triste, que não merece ser carimbado de outra forma senão como genocídio.
Matar, queimar e transformar em cinzas
Já em fevereiro de 1915 os patriotas fanáticos estavam vencidos ou em frangalhos, só à espera da prisão ou da morte. Os militares faziam centenas de prisioneiros a cada reduto desmontado.
Quanto mais venciam, mais prisioneiros faziam, e era preciso alimentar e proteger a todos. Quando o número de prisioneiros se aproximou de mil, o general Setembrino de Carvalho sentiu o tamanho da encrenca.
Chegando à vila de Canoinhas com seu mar de prisioneiros, telegrafou aos chefes solicitando ordens sobre o que fazer com eles, sem recursos suficientes para alimentá-los.
"Recebe a resposta tempo depois, dando-lhe carta branca para solucionar o problema. O general, pressionado pelos governadores dos dois estados, parlamentares e coronéis das províncias, decide exterminá-los, queimam e jogam as cinzas no Desfiladeiro da Morte e do Diabo, nos arredores da Canoinhas" (Luiz Alves, Guerra do Contestado).
A última refeição dos fanáticos patriotas do Contestado não conseguiu ser macarrão com salsicha, limitando-se às águas de ribeirões. Rezando diretamente para o alto, não se queixariam da ausência de wi-fi em sua prisão ao relento.
Seus nomes não foram coletados para processos judiciais e sequer tinham noção do que seriam direitos humanos.
O vermelho da bandeira traiçoeira
Pode ser que não fossem humanos direitos, com seu fanatismo religioso e ódio à República, mas se quem convida dá banquete, quem prende tem deveres humanitários a cumprir. Não os cumprir desonra os prevaricadores.
No mais, mesmo com a República vitoriosa nos confrontos de 8 de janeiro, é cedo para dizer que foi a vitória da democracia, tão louvada depois das centenas de prisões de patriotas cujos manipuladores tinham a intenção pérfida e oculta de desfraldar o lábaro da monarquia.
Resta augurar que nunca mais bandidos se disfarcem com a bandeira republicana para cometer depredações e vandalismos, completando por traiçoeiramente içar nos principais mastros da República a superada bandeira monarquista com seu inequívoco vermelho.
O vermelho da Ordem de Cristo na coroa e o vermelho dos ramos e frutos de café - enfim, a bandeira do Império desfraldada pelos fanáticos do Contestado.
Que só a bandeira republicana, sem os tons de vermelho do sangue dos iludidos ou dos símbolos da realeza lusa, seja para sempre içada nos mastros do Palácio do Planalto, do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br