Atenção: 23 é ano de reviravoltas
Alceu A. Sperança
Se vale o escrito e registrado, os anos 23 de cada século trazem reviravoltas impressionantes. O pior personagem de 1823, por exemplo, foi Pedro I, que em 22 havia sido o melhor. Algo como Bolsonaro ser aclamado "Mito" até 2022 e ser chamado de fujão do Xandão logo no início de 2023.
Contraditório, mas sedutor, Pedro I tinha uma enorme sede de poder. Decidiu ser imperador no Brasil e rei em Portugal ao mesmo tempo, mas se perdeu na gestão e levou o Brasil a perder seu Sul: o Uruguai.
Para os dois reinos, prometia demais e cumpria pouco, estilo irritante seguido por muitos governantes do Brasil pelo futuro adentro.
O filho dele, Pedro II, foi mais decente, mas até hoje os nordestinos esperam pelo cumprimento da mais solene promessa já feita por um governante brasileiro:
- Venderei até o último brilhante da minha coroa para acabar com a seca do Nordeste.
Amado por muitos e odiado por alguns a mais, a bagunça que o autoritarismo de Pedro I fez no Brasil foi imortalizada na escolha de 7 de setembro para a data da Independência.
Já que a verdade liberta, três anos depois do 7 de setembro o Brasil comprou da Inglaterra o reconhecimento da Independência, pois desde a primavera de 1822 até o inverno do ano seguinte muitas lutas, mais decisivas que rasgar algumas cartas junto ao Ipiranga, ainda teriam que acontecer.
O Brasil só expulsou de vez as autoridades portuguesas do território nacional em 2 de junho de 1823 e a Inglaterra cobrou caro para reconhecer esse fato, compra que fez o Brasil continuar vinculado ao rei português e dependente dos banqueiros britânicos.
Golpe em cima de golpe
Há muito mais para demonstrar que o ano 23 do século XIX foi um ano de reviravoltas. Em 13 de março, por exemplo, houve a Batalha do Jenipapo, na qual as tropas portuguesas foram expulsas pelos brasileiros do Piauí, antecipando-se aos bravos baianos.
Com o espírito revolucionário da liberdade, salve, salve tomando conta dos corações áureo-esmeraldinos, mais uma reviravolta se deu em 20 de outubro de 1823, quando Pedro I ignorou que era um adepto do revolucionarismo liberal e impôs a Lei das Províncias, com a qual, na prática, virou um ditador.
E só vai piorar: em novembro ele dissolveu o Congresso e prendeu os deputados que lutavam por... liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós!
Certo, o ano de 1823 pode ter sido terrível, mas por que não falar de 1723? Porque aí não sobraria espaço para resenhar as grandes badernas nacionais de 1923 que deram em reviravoltas ainda mais impressionantes que as de 1823.
Mas não vamos deixar 1723 passar em branco. A grande reviravolta desse ano foi o começo da formação do Paraná: até a criação da Ouvidoria de Paranaguá pelo Conselho Ultramarino de Portugal, naquele ano, o que hoje chamamos de Paraná era conhecido apenas como "sertão desconhecido" de São Paulo.
Começou em 1723, portanto, a história de riquezas do Paraná. Como fruto dessa reviravolta, o sertão vai virar metrópole.
Política x disciplina
Deu-se, então, que no ano da desgraça de 1923 o Brasil era governado por Artur da Silva Bernardes, vencedor de uma eleição muito polarizada, em que fake news tentaram provocar um ruidoso golpe militar. Sem sucesso, aliás.
O presidente anterior a Bernardes também havia sido um desastre. Epitácio Pessoa era uma espécie de mãe dos ricos e madrasta dos pobres.
Ao perceberem essa realidade, os militares jovens, provindos das classes despossuídas, rebelaram-se diante da corrupção que corria solta e deram origem ao tenentismo - o episódio dos 18 do Forte e as revoltas militares subsequentes.
Sofrendo a repressão de Bernardes, a rebeldia se desenvolveu no curso de 1923 até resultar na revolução de 1924, apesar do supernegociado Acordo de Pedras Altas.
As revoluções de 1924, 1930 e 1932 ensinaram com mágoa e sangue aos militares que quando a política entra por uma porta de quartel, a disciplina sai por outra.
Militares indisciplinados não são dignos desse honroso nome. Por isso é desaconselhável tentar arrastá-los a um golpe incivil e antidemocrático em pleno terceiro milênio.
Que reviravoltas teremos?
As possíveis reviravoltas de 2023 certamente não incluem devolver o País a Portugal se a crise mundial piorar. Entregar aos índios não passaria em plebiscito ou referendo, pois o usucapião foi um saudável instrumento de reformas agrária e urbana.
No caso dos índios, a reviravolta possível é cumprir a Constituição, que determina a demarcação dos territórios. Nas cidades, a maior reviravolta imaginável seria a reindustrialização.
Como as reviravoltas costumam ser também surpreendentes, talvez só sejam consideradas reviravoltas de fato impossibilidades extraordinárias do tipo contatos imediatos do terceiro grau, teletransporte Terra-Marte e outras muskices.
Um aspecto invulgar das reviravoltas é que elas acontecem cada vez mais rapidamente. Desde as grandes navegações, uma revolução que ocorre a milhares de quilômetros de distância logo afeta uma região aparentemente imune ao contágio.
Foi assim com a revolução americana, que contagiou a França, e da francesa, que influenciou o Brasil, Bolívar e a futura globalização.
Hoje, efeitos ainda das diversas revoluções liberais, todo mundo é liberal: honestos, corruptos, traidores, traiçoeiros, perjuros, omissos etc.
Tão interessante quando focar as reviravoltas dos antigos anos 23 é verificar que esses acontecimentos detonam novas reviravoltas, que vão eclodir sete anos depois.
Em 1730, diga-se, começou o tropeirismo, que fez do ainda "sertão de São Paulo" uma das regiões mais importantes para a economia brasileira.
Atenção também às consequências
Em 1830, Pedro I já era tão odiado pelos brasileiros que decidiu deixar o país para não ser enxotado fora do palácio imperial. O assassinato do jornalista Líbero Badaró, seu inimigo, em novembro de 1830, precipitou os acontecimentos.
Numa cartada combinada com seus áulicos, para a família não perder direitos sobre o país antes de ele fugir de suas responsabilidades, abandonou aqui o filho Pedrinho, em cujo leito jogou a coroa imperial como quem se desfaz de uma camisa suja.
Então um menino tristinho por não poder acompanhar o pai na fuga à Europa, Pedro ficou por uma razão superior de Estado: o moleque teria que esperar a maioridade para assumir o trono.
Imagine-se o que esse piá passou e os maus exemplos que viu até ter a maioridade declarada, ilegalmente, em um golpe de Estado tramado pelos... liberais.
Depois de um governo bem-sucedido, já idoso e respeitado em todo o mundo, Pedro II teve a coroa tomada em 1889 por um golpe disfarçado de republicano que na verdade não quis lhe tirar o poder, mas impedir que uma mulher - a princesa Isabel -, virasse a imperadora.
Já em 1930 aconteceu a mais importante revolução brasileira, que abalou o poder nacional concentrado nas mãos dos ricos mineiros e paulistas e o tornou mais nacional e acessível à classe média.
Será que em 2030 algo assim tão extraordinário vai acontecer?
Quem viver, verá. Mas é de se presumir que terá algo a ver com o proletariado, que pode se resumir na soma de mortadelas e coxinhas em um só povo despolarizado.
Quando finalmente se cansarem de ser enrolados em eleições corrompidas por governantes mancomunados com o Centrão, a mais cínica e vitoriosa expressão orgânica de banqueiros, financistas e malandros em geral, talvez finalmente haja a melhor de todas as reviravoltas.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br