Campainha para chamar deuses garçons
Alceu A. Sperança
O volante Fred, escolhido como um dos culpados pela derrota da camisa verde-amarela na Copa do Mundo, supôs na trágica jornada de 9 de dezembro, quando a Seleção Brasileira foi eliminada pela Croácia, que "os deuses do futebol não estavam do nosso lado".
Não se tem ideia de quem seriam esses tais deuses de um esporte específico, mas se pode supor, se vale a lógica, que haja também os deuses do vôlei e do golfe, da natação e da corrida de cem metros.
O que se sabe é que eles não dão a mínima para os praticantes da modalidade, pois as coisas acontecem - e assim os índices e placares atestam - segundo o mérito e os cuidados de cada um na preparação prévia e na atuação na data prevista.
Também é história elementar que deuses, anjos e demônios geralmente morrem quando são esquecidos. E são esquecidos quando ao ser invocados não atendem às preces de seus fiéis.
Revoltados por não ser atendidos, os crentes trocam os deuses que os desampararam pelas divindades de povos mais ricos e bem armados, que lhes parecem capazes de atender melhor aos rogos dos fiéis.
Nesse caso, os deuses em geral morrem quando as civilizações que os cultuam entram em grave catástrofe, crise terminal ou são dominadas por forças estrangeiras.
Messi, o novo D...
O ex-jogador Casagrande (não confundir com nosso Preto Casagrande, amigo de Abel Ferreira) sentenciou que o argentino Messi, antes tido apenas como gênio do futebol, agora é um "deus da bola".
Sendo Messi um deles, está na cara que os supostos deuses do futebol "não estavam do nosso lado"...
Há jogadores de futebol que ao entrar em campo fazem certos rituais ostensivos e rezas invocando entidades misteriosas às quais não se sabe ao certo o que pedem.
Se for para vencer a partida, não é um hábito honestamente religioso, pois os jogadores adversários se julgarão no direito de pedir o mesmo a suas próprias entidades.
O resultado será um desastre: como haverá gols, se os goleiros pediram às próprias divindades para não tomá-los?
Se rezas, despachos de macumba e sincera devoção religiosa resolvessem alguma coisa no futebol e na Mega Sena, o Campeonato Baiano acabaria empatado e os apostadores das loterias de azar receberiam prêmios abaixo do valor apostado.
Nunca mais a Caixa Econômica bancaria um jogo sequer e ninguém teria motivos para apostar, sabendo que nunca iria ganhar milhões sozinho.
Há deuses do vil metal?
Se os jogadores forem espertos não pedirão vitórias a seus deuses, para não incorrer nos castigos eternos reservados a quem descumpre o terceiro mandamento.
Os bons contornam o vão egoísmo rogando que todos os envolvidos com a partida, dos gandulas aos árbitros e público assistente, possam depois do jogo ir para casa sem contusões nem fraturas.
A vitória esportiva vem do esforço do atleta e sua equipe. A não ser em condições extremamente únicas e sem atender a apelos específicos, não cairá um raio mortal sobre o boxeador que estiver amassando nossa cara logo no primeiro round.
Se há "deuses do futebol", por analogia também há deuses da economia e das ciências. Na cultura dizem que há nove musas, não exatamente deusas, pois filhas de Zeus e da Memória.
Ser filhos de deuses é uma condição também generalizada fora do Olimpo e não garante privilégio algum a quem só pede ao pai e não se esforça.
Talvez os deuses da economia ou do dinheiro entreguem o vil metal em grandes quantidades só a quem não usa seus nomes em vão. Implorar dinheiro para pagar os boletos, esses implacáveis vencedores, raramente atrai riqueza.
Oito de cada 10 famílias brasileiras estão endividadas, segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).
O castigo vem logo ou só depois?
Diz a Oxfam que há cerca de dois mil bilionários no mundo e eles guardam nas guaiacas físicas ou virtuais uma riqueza equivalente às posses de 4,6 bilhões de pessoas, provavelmente mais dinheiro que alguns de nós temos na algibeira.
Nem todo bilionário conta seus segredos, mas não há dados sobre algum dizendo que recebeu o valor disponível sem usar herança nem conhecimento, apenas por tê-lo pedido em grande e especificada quantidade.
Nem os miseráveis sabem explicar porque têm a renda devorada mês a mês, apesar das preces chorosas de inadimplentes ávidos por pagar as contas em dia.
Quem sabe ganharam o bilhete azul por não rogar a supostos deuses da educação tecnológica conhecimentos suficientemente reciclados para atender aos interesses e necessidades das empresas modernas.
Talvez o terceiro mandamento exista para evitar que os divinos sejam considerados garçons prontos a servir a qualquer pedido, alertas ao tocar da campainha, como um serviço de quarto de hotel cinco estrelas, prestes a atender a qualquer pedido extravagante vindo pelo interfone.
Argentinos sabem rezar melhor?
Os tais deuses do futebol parecem gostar de quem vacila menos e aproveita mais as chances que surgem do esforço. Mas os da economia e do dinheiro são terrivelmente seletivos: escolheram menos de 1% da humanidade para ganhar mais que os restantes 99%, presos desde que nascem ao time inferior por mais que rezem.
Os "deuses do futebol", aliás, têm uma cumplicidade irritante com argentinos. Na Copa de 1986, jogando contra a Inglaterra, o árbitro validou um gol irregular de Diego Maradona, que explicou o benefício:
"Marquei um pouco com a cabeça e um pouco com a mão de Deus".
Messi, feito nesta Copa um novo ser divino pelo polêmico Walter Casagrande Jr, declarou, após a vitória sobre a Holanda:
"Diego está nos observando do céu. Ele está nos empurrando e eu realmente espero que isso continue assim até o fim".
Do céu? Como ele poderia estar lá, se não respeitou o terceiro mandamento, Messi?!
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br