País dividido, nenhuma novidade
Alceu A. Sperança
Em 1573 já havia dois Brasis: o Governo do Norte e o do Sul. Dois séculos antes da Independência, que agora também completou dois séculos, o país estava dividido entre o Estado do Maranhão e o Estado do Brasil.
Um exercício de pesquisa histórica levantará facilmente que foram dois dos piores períodos da vida brasileira. A divisão de hoje traz uma diferença: coincide com um dos piores períodos da civilização.
Pode-se identificar claramente a divisão do país, meio a meio, entre o bolsonarismo e o lulismo. Há porém, algo que impressiona nesses dois cultos a personalidades.
No passado, havia uma só personalidade cultuada, geralmente rei ou imperador. Dos presidentes cultuados, o mais saliente foi Getúlio Vargas.
Não restaram coisas boas de nenhum dos velhos cultos. Eles já deveriam ter ensinado lições suficientemente sábias para que seus piores efeitos nunca mais se repitam no futuro.
A grande ironia atual é o culto às personalidades de dois líderes manietados pelo semipresidencialismo (também chamado pelos racistas de parlamentarismo branco), genial geringonça inventada pelo Centrão.
É uma apropriação do frustrado culto às personalidades. Nela, os fiéis de cada ídolo sempre vão se decepcionar e dar com os burros n’água.
A regra do culto, no passado, era que o ídolo derrubado tinha dificuldades para retornar, mas hoje, na democracia do poder alternado, você pode endeusar e mitificar quem quiser e o fazer voltar depois de quatro ou oito anos, desde que depois das eleições o poder seja sempre compartilhado com o Centrão.
Nesse modelo, os ídolos vencedores se ajoelham perante o deus-Centrão, corporação onisciente que apita o jogo antes da Justiça, controla o parlamento de fio a pavio e negocia com maestria cargos-chaves no Executivo com o ídolo-mito de plantão.
Já que se trata de aprender lições com a história, temos claramente que em 2018 a direita mundial golpeou a arrogância lulopetista e em 2022 o centro mundial estapeou o desprotegido traseiro da ultradireita brasileira.
Uma surra nos arrogantes
Os dois lados já tiveram uma surra exemplar, com a nuance recente de que o lulopetismo se deslocou para o centro e com isso venceu a eleição, absorvendo partes do nacionalismo que se curva solene à bandeira, às urnas e à Constituição, contando com a cumplicidade do Centrão-raiz, que faz qualquer negócio com qualquer governante.
E assim deixou a extrema-direita gritando sozinha, achando que convenceria os militares decentes a rasgar a Constituição e bancar um golpe sem apoio no espírito democrático nacional e no liberalismo mundial.
O golpe que o lulopetismo sofreu ficou evidente em 2018, quando Lula não conseguiu transferir da prisão o prestígio que supunha ter ao "poste" Fernando Haddad, um seguidor obediente mais com um perfil que o próprio militante-raiz do PT considera conciliador de classe. Num insulto, um tucano-malufista.
Não é que deu certo antes passar a luz para o poste Dilma, porque ela veio da tradição trabalhista, de Leonel Brizola, e assim acrescentou facções ao lulismo. Haddad sempre foi o mesmo do mesmo.
Mantendo a palavra, o bolsonarismo perdeu para si mesmo, ao fracassar no cumprimento da promessa de instituir uma "nova política", que seria governar por bancadas temáticas: boi, bala, bíblia, blá-blá-blá, todas engolidas facilmente pelo Centrão que já antes havia metabolizado o lulismo com o Mensalão e o Petrolão.
A democracia dos governantes incompetentes
E aí chegamos outra vez ao país dividido, com tudo que a divisão causa em traumas, gritarias, tiroteios e a transformação de tias outrora gentis em furiosas destruidoras da harmonia familiar via Zap.
O que mais transparece dos resultados eleitorais no Brasil e no mundo, pela incapacidade dos governantes de resolver problemas essenciais como a fome, a pobreza, o clima, o horror da diáspora dos refugiados e a ignorância/desinformação, é que vigora a filosofia de Lampedusa, de tudo mudar para continuar a mesma coisa.
Como os brasileiros conseguiram se dividir tanto, a ponto de um convertido olavista ser incapaz de entender um "marxista cultural" e vice-versa, mas todos, ingenuamente, aceitarem ser eternos súditos do Centrão?
Talvez a resposta esteja no teor de uma obra recente - O Despertar de Tudo: Uma Nova História da Humanidade, de David Wengrow (britânico, arqueólogo) e David Graeber (estadunidense, antropólogo).
Para eles, as sociedades pré-históricas e nossos índios tinham regras de democracia e civilização muito superiores àquela que os europeus enfiaram a ferro e fogo nas Américas.
Não vote nele: surre o candidato
Havia democracia e liberdade reais, ao contrário da fantasia atual de que liberdade é deixar os bancos e os complexos industriais-militares vigiando cada passo de cada um de nós com implacáveis algoritmos, tomando conta de tudo, desde antes do nascimento do cidadão até seu óbito e pós-morte.
A "nova política" só deu mais poder ao Centrão, sem acrescentar um cêntimo à democracia, mas a dupla Wengrow-Graeber demonstra que antes de Colombo e Cabral havia nas Américas uma espantosa democracia-raiz.
Nela, as cidades não tinham governantes cheios de conversê e arrogância. As sociedades eram perfeitamente administradas com foco integral no bem comum por seres especiais.
Era uma classe política que não dependia de votos, mas de passar, como diz Wengrow, "por longas provações incrivelmente dolorosas, em que eram chicoteados, esfomeados e ridicularizados, para quebrar seus egos e fazê-los lembrar que seu papel era encarnar o povo e não projetar suas próprias preocupações".
"O antiCristo será vencido e aniquilado"
Ao ver o rotundo fracasso dos governantes de hoje, eleitos com Fundões Eleitorais bilionários, bate uma tremenda vontade de tentar o método funcional dos antigos: espancar os candidatos até ver quem aguenta e lhes dar a humildade necessária para não prejudicar seus semelhantes com corrupção e mentiras.
A Pátria é mãe gentil, mas a cada eleição dá chineladas nos iludidos e os manda não fugir à luta contra a pobreza e o atraso.
Filho ingrato não pensa que no século XIX o Brasil tinha uma economia com o mesmo tamanho da americana e até 1964 tinha um PIB igualado ao da Coreia hoje rica. Acha que votando cumpre todo o seu dever.
E já que estão lançando novos ismos por aí, sempre se pode tentar o vieirismo, uma teoria antipadre Kelson-mon, derivada de uma interessante profecia do padre Antônio Vieira:
- O mundo será perfeito. Desaparecerão a maldade e a iniquidade. Habitará o lobo com o cordeiro e deitar-se-á o leopardo com os cabritos. Os homens viverão vida longa, muitos chegarão aos 1000 anos e assistirão à vinda do antiCristo, que será vencido e aniquilado. Então será o fim do Mundo e o reino dos bem aventurados, para sempre.
Alceu A. Epserança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br