Jovens brasileiros: da miséria às galáxias
Alceu A. Sperança
Nos territórios de guerra, escombros e tristezas visíveis, expostos em noticiários de tempo real.
Nos grotões brasileiros, sem o interesse do sensacionalismo midiático, casebres caindo são ocultos pelos coloridos tapumes de novos arranha-céus e outdoors fanáticos anunciam em breve mais uma obra do governo de Fulano, maior que tudo já feito antes.
Crianças sem lar, sem aulas nem futuro até rendem premiados ensaios fotográficos, mas reduzidas políticas, que parecem grandes e maiores só na maquiada publicidade dos feitos de Fulano federal, Beltrano estadual ou Sicrano municipal.
Falam em crianças todo o tempo, mas lhes passam vírus com beijos nas bochechas, infernizam a vida dos pais com a carestia e desdenham do planejamento que poderia dar a elas um bom futuro.
Eis que, neste momento de pessimismo incontrolável, ocorre de súbito uma intervenção externa no texto em preparo:
- Não tem jeito de melhorar essa escrita? Se a gente focar na desgraça vamos atrair mais desgraças. Foque nas coisas boas e desse jeito logo a miséria vai desaparecer e chegaremos às galáxias.
Sob nova direção
Segundo a nova orientação, será suficiente olhar fixamente um retrato de Elon Musk para ganhar um trilhão de dólares.
E assim enquanto esperamos a grana cair do céu, emanada como o maná de um satélite Starlink, por que não começar logo pelas galáxias?
A estudante cearense Maria Larissa Paiva, 16 anos, que já havia descoberto um asteroide reconhecido pela Nasa, terminou há pouco uma análise astronômica na qual classificou, sozinha, 1.450 galáxias.
- Precisa dizer que foi o feito de uma brasileirinha. Qual Fulano apoiou esse esforço?
Foi a avó, que nada entendia de astronomia. Mas a menina se interessou pelo assunto e acabou se juntando ao projeto Galaxy Cruise, do Observatório Astronômico Nacional do Japão.
- Avó? Japão? Mas como isso vai contribuir para a redenção nacional sustentada pelos semideuses da nossa nova política?
Telhas de moluscos
Talvez antes seja interessante lembrar o caso de Ana Júlia Monteiro de Carvalho, 18 anos, a única aluna da América Latina no top-10 do Global Student Prize, considerado o Nobel da Educação.
Ela competiu com mais de 3,5 mil outros estudantes de 94 países para chegar à fase final do prêmio. Teve a atenção sobre ela despertada por criar um projeto de fabricação de telhas usando um molusco por matéria-prima.
- Molusco, não, por favor! Não esqueça de citar qual grande prócer da política nacional fez o milagre acontecer.
Na verdade, ela foi apoiada pelo Sesi de Alagoas e só depois de ficar famosa por suas invenções em favor de pessoas pobres do Nordeste foi chamada ao palácio pelo governador Renan Calheiros Filho.
- Calheiros? Sai dessa! O pai dele foi indiciado pela Polícia Federal como corrupto e lavador de dinheiro.
Cinco anos sem molecagens
Sem sair do campo da astronomia e para enaltecer não só a juventude mas também a infância brasileira, você pode, alternativamente, recordar o caso surpreendente de um brasileirinho de cinco anos, Miro Latansio Tsai, declarado a pessoa mais jovem no mundo a descobrir um asteroide - e além desse ele já descobriu outros 14.
- Alvíssaras! E com o apoio de que autoridade superior da nossa política redentora e temente?
Autoridade da mãe advogada, que o fez assistir à série Cosmos, de Carl Sagan, e do pai, Jack, administrador de empresas. Depois que se soube do feito do piá, o ex-governador paulista, João Doria, fez uma homenagem a ele.
- Mas logo o Doria, que jacarezou meio Brasil?
Então, para fugir ao risco de vincular tudo com a política messiânica de hoje, que tal lembrar o caso histórico do jovem João Gualberto Gomes de Sá Filho?
Com 20 anos, em 1894, como castigo por insultar o presidente Deodoro, foi mandado para o meio da mata com a responsabilidade de levar o telégrafo e a telefonia até Foz do Iguaçu.
- Insultou o presidente? Que moleque!
Mas João Gualberto não ficou só na glória desse feito. Depois o mandaram combater o monge José Maria de Jesus, no Irani, onde foi estraçalhado a facão pelos religiosos fanáticos.
- Melhor ficar só nos bons exemplos da infância e da juventude patriótica do Brasil.
Desperdício de jovens
Cada vez há menos crianças e jovens patrióticos. Em 2020, o número de registros de nascimento foi o menor desde 1994. A cegonha parece ter medo de virar galeto se der as caras nos lares brasileiros.
Os que conseguem nascer estão ficando burros: de cada 5 adolescentes entre 15 e 17 anos, um não se matricula ou desiste antes do fim do ano letivo no ensino médio.
23% dos jovens brasileiros são nem-nem: nem estudam, nem trabalham. É nesse grupo que o crime organizado recruta operadores abaixo dos 18 anos, havendo vagas na escola do crime até para os sub-10.
- Essa raça, só matando e prendendo...
Estão providenciando. É a única tarefa cumprida com diligência e eficácia: eles morrem em chacinas, no trânsito, arruínam o cérebro em baladas de álcool e ecstasy, vegetam nas prisões e quem escapa disso tem a vida abreviada por falta de educação e bons hábitos.
Um em cada quatro adolescentes apresenta excesso de peso e um em cada dez, hipertensão arterial. Um em cada cinco apresenta taxas acima do recomendável de colesterol.
- Da próxima vez esquece tudo isso e continua aquele assunto das galáxias. Melhor botar um retrato do Elon Musk em cada caderno escolar. Por que perdem tempo descobrindo asteroides? Descubram trilhões de dólares, oras!
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br