Cuidado com as onças das Cataratas do Iguaçu
Zé Beto Maciel
"Tudo é uma questão de manter/a mente quieta/a espinha ereta/e o coração tranquilo"- Walter Franco
A primeira vez que fui ao Parque Nacional do Iguaçu devia ter uns seis anos. Fomos a minha família e a família do seu Osvaldo Pilatti em um pé de bode, devia ser lá pelos anos de 1969. Duas famílias grandes (algo em torno de 10 pessoas), espremidas nos assentos e na carroceria da caminhonete/caminhão. A viagem foi longa, com duas paradas para esfriar o motor e colocar água no radiador. Uma manivela era acionada para dar a partida.
Nas paradas, lembro que as árvores eram enormes e frondosas, era um tempo das cigarras em que as ninfas cavam túneis sob as árvores, sobem e sofrem a ecdise, ou seja, uma ruptura do esqueleto externo, que a gente chamava de casca. E como havia cascas, fazíamos coleção, apesar de serem frágeis. As cigarras cantoras eram as zizizi e cocorocós. Uma das diversões da infância era apanhar uma cigarra, amarrar no barbante fino e soltá-las (que crueldade). O único receio era que receio dos jatos de mijo das cigarras que os mais velhos diziam ser venenosos. Pura lenda.
Com esse intermezzo longo das cigarras, chegamos às Cataratas do Iguaçu, a atual área de visitação do parque nacional. Foi arrebatador e ao mesmo tempo fóbico, as quedas eram enormes e o volume das águas, estrondoso, se ouvia a distâncias maiores que hoje, um verdadeiro espetáculo. Era uma sensação tipo eu quero, mas não quero. Inda mais para mim, uma criança cheia de medos e curiosa ao mesmo tempo.
As trilhas eram picadas e caminhos que seguiam até a contemplação das quedas e num improvisado, coloque improvisado nisso, deck de madeira sob o salto Floriano. Passear nas Cataratas era, literalmente, uma diversão. Havia grupos que escalavam os maciços, outros que se aventuravam por dentro da mata e alguns até pescavam sob os olhares complacentes de todos. Não lembro se os guardas-parques já atuavam, me parecia que havia um código de regras que não permitia deixar lixos, mas não repreendia a coleta de mudas de manacás, trepadeiras, samambaias e outras espécies arbóreos pequenos, já que o arvoredo tomava conta de grande parte da cidade, incluindo o centro.
Voltei das Cataratas com uma sensação esquisita, o que tornava diferente. Meu pai falava que os índios e os padres enterraram um verdadeiro tesouro aos pés da Garganta do Diabo. O difícil acesso, impossível pelo volume d'água, amplificava meus sonhos. Será que um dia conseguiria um pote de ouro debaixo das quedas? Só sei que desde então um herói das minhas próprias divagações e alumbramento.
Desde então não perdia a "Lenda das Cataratas", irradiada todos os dias do aniversário da cidade pela Rádio Cultura. Não lembro dos nomes dos narradores e os atores da novela que era uma expiação do mau comportamento. Enfrentar M'Boi, o deus serpente, salvar Naipi e Tarobá faziam parte da minha tentativa de mudar a lenda, inventando outros personagens, aventuras e desfecho para a trama.
Uma segunda visita às Cataratas teve uma tragédia. Meu tio Arlindo veio com a família e comprou um hotel e restaurante na rua Floriano Peixoto. A tia Nanci era uma excelente cozinheira. Com os filhos João, Arlindinho (Oiê) e Marco Antônio e mais um grupo, lá fomos levar a família Bonfim para conhecer o parque nacional. Isso já era nos anos 1970.
As Cataratas estavam cheio de gente, começaram a pipocar na cidade desde a notícia da construção de uma usina no rio Paraná. Acima das quedas, um bosque aberto onde se assava carnes, em qualquer quantidade em espeto de pau, tomava-se refrigerantes e chopes gelados nas serpentinas. A sobremesa, a melancia esfriada nas águas do rio Iguaçu, mas depois de sorvê-la tinha que esperar pelo menos duas horas para se esbaldar e nadar no Iguaçu.
Foi a primeira vez que vi fila nas Cataratas e um garçom, não lembro o nome, do restaurante foi nadar fora dos remansos das margens e desapareceu. O desespero foi geral e ninguém o encontrou. Eu vi o local em que ele estava nadando, disse ao tio. Não teve jeito ninguém o achou. Meu tio marcou que me levaria novamente na segunda-feira para apontar o local exato do nado. Fiquei alegre e contente, ir nas Cataratas em menos de um dia, não tinha o melhor programa. Qual o quê, o corpo do garçom apareceu boiando pela manhã e meu tio foi avisado por rádio e não precisava mais de mim. Todos ficaram tristes e o corpo do garçom foi transladado para sua cidade natal. Não me perguntem o nome.
Em 1976, eu estudava no Mitre e o terrível João Leitão (era seu apelido) todos os dias pegava um ônibus de linha que tinha destino Santo Alberto, uma vila de alemães e italianos vinda do Rio Grande do Sul com mais de 2,5 mil moradores que certa forma, foram enganados e tiveram suas terras desapropriadas a partir de 1973, o que se arrastou até o final dos anos 70 e início dos anos 80. As comunidades Dois Irmãos, São Luiz, Santa Luzia e São José tiveram que deixar o local que estava dentro do parque nacional, conforme as delimitações do decreto de Getúlio Vargas de 1939.
Um dia me aventurei e peguei o ônibus de Santo Alberto. Despistei as perguntas do que estava fazendo ali, desci no último ponte e entrei dentro do parque nacional. Caminhei tranquilo pela estrada em direção às Cataratas até que fui alcançado pelo administrador do parque que puxou minha orelha, literalmente, e tentou me amedrontar. Eu quase tinha virado comida de onça. O senhor era amigo do meu outro tio, Agostinho, que já trabalhava no Hotel das Cataratas, e também conhecia toda minha família, meu pai e minha mãe, que inclusive era madrinha de duas de suas filhas. Não sobrou outra alternativa, disse que me perdi, que sabia como voltar, que seguiria até as Cataratas e encontrar algum conhecido, etc. As desculpas não me livrou de uma baita surra da minha mãe.
Daí por diante, as Cataratas viraram o roteiro comum e virei cicerone de parentes e amigos da família que visitavam o parque. Inventava nomes de pássaros e outros animais da sua, tipo gavião caramujo, papagaio de peito amarelo, guachos de costa vermelha, tucanos de bico longo, jaguatirica brava, macuco do rabo sujo, os lagartos de papo gordo e assim por diante. Na grande seca de 1978, eu estava lá para pegar meu pote de ouro e não deixaram seguir até a garganta do diabo que se transformou em filetes d'água.
Eu e um grupo de amigos, volta e meia, entrávamos no parque e nos misturávamos nos meios de turistas e alardeávamos que as onças tinham rangado duas inglesas na noite do parque. Os turistas que pediam auxílio para tirar fotos, fingíamos que não entendia a língua e fazíamos troças com os casais, ora abraçando um ou outro. Também fiz parte daqueles que espalhavam os boatos que as Sete Quedas no rio Paraná foram construídas a picaretas.
Com o mesmo grupo, desbravamos o interior do parque, o Poço Preto, a Usina São João, o rio Floriano, as duas lagoas de jacaré, as ilhas no rio Iguaçu e as trilhas longas acima das quedas. Era uma aventura e todo tropel de um jacaré, teyu ou de um animal qualquer, a escalada nas árvores era a melhor alternativa. Por tantas vezes cruzamos a avenida das Cataratas, com alucinógenos, para viajar perto das quedas. Quem assistiu o filme Happy Together tem a noção como era sentir o spray das águas no rosto e no corpo.
Em 1992, depois das cheias no final dos anos que levaram a passarela sobre o Salto Floriano, eu também estava lá. Tantos os prefeitos Álvaro Neumann e Dobrandino da Silva apoiaram a revitalização da passarela. Em 1996, eu e a jornalista Sônia Inês Vendrame revelamos no Tribuna de Foz que as permissões na área de visitação eram ridículas, míseros centavos ou reais, até a permissão de uso do Hotel das Cataratas era escandalosa. As matérias vieram na esteira das novas concessões do parque, mas também apontamos os absurdos da tentativa de compra, prevista na nova concessão, de obras do Frans Krajcberg por pequenas fortunas, o que foi excluído pelo edital.
Em outra ocasião, um grupo de jornalistas foi passear nas Cataratas e resolveu catar duas toneladas de lixo abaixo das quedas. Fomos 'presos' nadando na piscina formada pela queda do rio São João, próxima a usina que um dia abasteceu a cidade. Também brigava pelos mais incautos que chegavam até a sede do parque e queriam ir até a usina e deixavam som alto ligado nos carros, além de chutar os despachos de macumba nas margens do rio.
Não posso esquecer do eclipse solar de setembro de 1994, quando a manhã virou uma coloração meio marrom e os pássaros voltando para dormir, parecíamos que estávamos em outro planeta numa infindável palheta de cores e os arco-íris formados pelas espumas das águas. Também estava no acidente entre barcos no rio Iguaçu que ceifou a vida de sete pessoas em 1999.
Já no ano 2000, eu, o Ronildo Pimentel e o Adilson Borges montamos um bunker na sede do parque e disparamos notas, matérias e conteúdos denunciando o uso de máquinas das prefeituras da região que a força queriam reabrir a estrada do colono. Conversei com o então deputado Fernando Gabeira que faria parte de um grupo de parlamentares que sobrevoaria a região. Gabeira recusou a voar, não gostou do engodo e o Ibama entrou com ações que culminaram com o fechamento definitivo da estrada, hoje encoberta com a recuperação da mata.
Eu contei tudo disso, de forma destrambelhada, para reafirmar que o Parque Nacional do Iguaçu e as Cataratas fazem parte da minha identidade, era o nosso cataratas every day, da minha formação política e ideológica. E o parque que fez 78 anos, a beira de uma nova licitação de 30 anos, não pode e nem deve esquecer dessas e muitas histórias que vão dar o entendimento da sua importância na vida dos moradores das cidades do seu entorno. Muitas curas vão ser descobertas na sua farmacopeia, seu banco genético é gigantesco. Administrá-lo e explorá-lo somente do ponto de vista mercantil é de uma miopia sem tamanho.
O médico paraguaio Luiz Rolon, radicado em Puerto Iguazu e criador do museu M'bororé, sempre dizia que devíamos encontrar mais uma redução jesuítica que formaria um vértice com a missão de São Miguel na Argentina e outra na região de Sete Quedas. Esse triângulo, dizia ele, tinha algo de sobrenatural que impressionou muitos os guaranis e outras nações indígenas. Rolon foi consultor do filme A Missão, de Roland Joffé, com Robert de Niro e Jeremy Irons e filmado nas Cataratas do Iguaçu em 1985. As Cataratas do Iguaçu é, sem dúvida, uma maravilha da natureza e como os índios que aprenderam a falar com os pássaros, eu vou continuar assobiando.
Em tempo: o terrível acidente em Capitólio (MG) nos mostra que o turismo contemplativo deve ir além da busca desenfreada de melhores ângulos de selfies e imagens. Deve ser feito com calma e tempo sem atribulações de hordas e caravanas que não curtem como deveriam curtir a natureza.
Zé Beto Maciel é jornalista