O império da insensatez
Rubens Glezer
A insensatez reina suprema no STF. Os casos se tornaram armas, e os processos são instrumentos de estratégia em uma guerra campal entre os ministros. A recente disputa entre os ministros Édson Fachin e Dias Toffoli talvez seja o sintoma mais claro deste cenário que se estabelece nos limites da legalidade, mas fora da legitimidade.
De um lado, há quem se estarreça com a concessão da liberdade a José Dirceu ou quem se enfureça com a remessa do processo de Lula para ser julgado pelo plenário (em vez de ser decido pela Segunda Turma).
Por outro lado, há quem não veja nesses atos nenhuma novidade propriamente dita, já que certos ministros têm concedido liberdade para outras pessoas na mesma situação de Dirceu, enquanto vários casos da Lava Jato já foram remetidos para o plenário sem uma justificativa rigorosa. A verdade entre essas duas posturas só pode ser encontrada se essas situações forem colocadas em contexto.
As regras e os processos jurídicos foram conscientemente deixados de lado a partir de 2015 quando os ministros do STF passaram a encampar uma luta por uma certa moralização da política. Essa agenda se identificou em parte com um suporte à Lava Jato.
A partir do falecimento do ministro Teori Zavascki se torna aparente uma disputa dentro do tribunal entre os que mantiveram apoio (com maioria no plenário) e os que viam a necessidade de limitar a Lava Jato (com maioria na Segunda Turma). Nessa disputa, o único pacto aparente parece ser respeitar regras e procedimentos quando for conveniente.
Quando a ministra Cármen Lúcia se negou a pautar as ações que discutiam a prisão em segunda instância sob a única justificativa de evitar sair vencida, a disputa chegou a novos patamares.
De um lado, ministros que eram contra a prisão em segunda instância continuaram julgando conforme sua consciência e concedendo habeas corpus para casos que chegam às suas mãos.
Por outro lado, a maioria dos ministros autorizou que Fachin enviasse qualquer caso para ser julgado em plenário, evitando a Segunda Turma, sem que fosse necessário preencher qualquer requisito objetivo.
De nenhum lado houve preocupação com a segurança jurídica, com a igualdade entre réus e com a imagem de imparcialidade do tribunal.
É nesse cenário que um grupo de ministros se sente à vontade para conceder um habeas corpus de ofício (que não foi solicitado pelos trâmites normais) em confronto com a orientação da maioria do tribunal, é confrontado com um pedido de vista que visa impedir a concessão da liberdade, e opta por ignorá-lo.
Todos esses atos estratégicos já foram realizados isoladamente em outras ocasiões, mas nunca em um mesmo julgamento.
É por essa mesma razão que um ministro se sente tranquilo em remeter o caso de Lula para o plenário, simplesmente visando que sua convicção prevaleça como vencedora. Nenhum sinal de boa-fé.
É a vitória desse raciocínio estratégico que explica também por que o STF trabalha com diretrizes frouxas para os casos de impedimento e suspeição.
Os ministros nunca levaram até o final nenhum caso em que determinam que um deles não tem o poder de julgar determinado caso.
No final do dia, ministros permitem que cada um decida o que queira julgar, para que todos tenham a liberdade de extrapolar os limites da aparência de imparcialidade quando quiserem. Nenhum indício de preocupação com a dimensão institucional das decisões.
O STF se transformou definitivamente em STF. De pouco importam as regras, princípios e precedentes.
Para analisar conduta de um tribunal governado pela insensatez não tem sido preciso saber muito de direito; basta cinismo.
Rubens Glezer é professor e coordenador do Supremo em Pauta da FGV-SP