Era uma vez um país jovem e aglomerado
Alceu A. Sperança
Supõe-se que no multiverso haja no mínimo duas versões da Terra - ela e seu contrário. Provavelmente nos coube viver na versão contrária, pois fica difícil explicar às crianças por que falta água para beber e irrigar plantações num mundo que é praticamente uma bola de água.
Fica difícil compreender por que falar de saúde é na verdade desfiar um imenso rosário de doenças. Religião significa religar, mas pessoas devotas se desligam para se dividir em bandos, polos, bolhas e seitas.
Para Arthur Schopenhauer, em escrito de 1844, nosso mundo deve ser o pior de todos os mundos possíveis. Razões não lhe faltavam para esse infeliz pessimismo. Já em sua época governantes de meia pataca administravam mais os próprios interesses que os da coletividade em geral.
Faz sentido um país que já teve um esclarecido Churchill à frente cair nas mãos de um crente em ilusões obscuras?
Dominic Cummings, principal conselheiro do premiê britânico Boris Johnson, denunciou que milhares de pessoas morreram porque o atual chefe do governo britânico achava que a Covid-19 era uma espécie de catapora passageira.
Baladas viróticas
Johnson chegou a sugerir que as pessoas deveriam se aglomerar. Fazer "festas de catapora" para espalhar mais rapidamente o vírus e alcançar a imunidade de rebanho, coisa perversa.
Seu gabinete paralelo lhe meteu na cabeça a ideia de que o novo coronavírus não passava de uma variação da gripe suína e nem chegou a grunhir quando pegou o vírus, ficando à beira da morte mas sendo felizmente salvo pela ciência que desprezou.
O arrogante líder argentino Alberto Fernández, indignando os ossos do habilidoso Perón enterrados no Cemitério da Chacarita, disse que os brasileiros vieram da selva e os platinos vieram da Europa em navios, ignorando que esses orgulhosos europeus desembarcados massacraram índios no genocídio do Pampa.
Governantes sem noção fazem o oposto dos estadistas que deveriam ser em um mundo decente. Opostos ao que prometeram nas eleições, caem diariamente em contradições e negam até o que lhes salta à vista.
Pais enterram filhos
Estados são possuídos por grupos privados e perjurar a democracia e a Constituição lhes rende aplausos. Nesse mundo ao contrário, religiosos vivem com o demônio na boca. Políticos falam mais nos planos do inimigo de estimação que nos próprios planos, via de regra também sinistros.
Vacinados viram macacos e jacarés. Humanos desumanos chamam Lady Gaga, com aquela voz do outro mundo, de reptiliana.
O Brasil, talhado para ser a grande potência ambiental do planeta, é visto pelo menos desde Belo Monte como a antessala do Apocalipse climático.
O oposto do que deveria ser, é contra toda lógica o pai enterrar os filhos. Mas idosos estudam e têm a vida prolongada pela ciência enquanto jovens sem educação nem trabalho morrem aos magotes, de trânsito, baladas, álcool, aglomerações e outras drogas, como o sal, o açúcar, o chocolate e certas farinhas.
Ao deixar de ser um país de jovens entusiasmados para se tornar um império de velhos amargurados, até velharias inúteis são proclamadas. O país também assume a aparência de uma versão contrária do que poderia ser.
Intervenção militar
Aquele que Stefan Zweig propunha como "o país do futuro" caiu no atraso a tal ponto que em Rondônia obrigaram as crianças a reverenciar nas escolas a bandeira do velho Império, morto pela intervenção militar de novembro de 1889 que deu início à anarquizada República dos Generais.
Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (Jovens: Projeções Populacionais, Percepções e Políticas Públicas) aponta que quando finalmente houver empregos vai faltar mão de obra, porque não haverá jovens em número suficiente para ocupá-los.
Balas perdidas matam crianças nas favelas, balas achadas liquidam jovens pobres que farão falta amanhã, mas hoje são bandidos a ser eliminados.
Quando escapam dos tiros e são bem cuidadas, essas crianças podem surpreender, como o menino Augusto Melo, de Roraima, que com três anos de idade toca piano, sabe matemática, conhece os alfabetos russo e português.
Aliás, o fedelho se alfabetizou aos dois anos também em Inglês e já sabe muito de ciências.
Piás espertos como o Guto amazônico já estão na mira de países nos quais também as crianças rareiam, os jovens se perdem nas ilusões conspiratórias e se envenenam com porcarias de comer e beber.
Cerca de R$ 16 mil por mês
Chafurdando na gordura excessiva, na magreza repentina e na perda de imunidade, jovens frágeis não resistem às pragas que se espalham no ar, em fumaças, ventos e perdigotos desmascarados sem fim.
Cigarro faz mal aos pulmões de todas as idades e o Brasil queimando vai fazendo mal aos jovens que não aprenderam ou se esqueceram de que ler é interpretar o que é lido, analfabetismo funcional que os faz perder os melhores empregos.
De mãos dadas com a burrice, a morte: mais de 40 mil brasileiros que poderiam trabalhar são assassinados por ano, quase 30 mil morrem no trânsito, muitos em plena juventude.
Muitos jovens espertos que resistem e sobrevivem tentam fugir do país. O Serviço de Alfândega e Proteção das Fronteiras dos EUA prendeu mais de 22 mil brasileiros que tentaram entrar pela fronteira mexicana entre outubro de 2020 e maio de 2021.
É como se fosse o município inteiro de Altônia tentando se encaixar por lá. Jovens, of course.
Os que ainda não partiram são alvejados por atraentes campanhas que oferecem vantagens para jovens inteligentes, caso da Alemanha. Até outubro, a Bolsa Chanceler Alemã para Futuros Líderes oferece custeio de estudo de até 2.750 euros mensais para jovens brasileiros.
Se conseguirem se vacinar para poder viajar, boa viagem.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br