Conspirações malucas, ciência em xeque
Alceu A. Sperança
Como não admirar um negacionista? Ao negar, ele passa aos crentes a tarefa de arranjar argumentos convincentes, por sua vez também discutíveis. Negar é o estado da arte.
Talvez um dia algum fanático por Boçal, o deus dos sumários (não confundir com sumérios), alcance você na rede. Ele fervorosamente tentará lhe fazer crer na doutrina segundo a qual Boçal enlouquece os homens e os leva a errar muito em suas escolhas porque errar é humano e é assim que provam sua humanidade.
Esse raciocínio maroto chega a atordoar o alvejado, mas nesse caso, mesmo sob o risco de ser ofendido em seu próprio perfil, basta negar o deus dele e seguir a vida. O ônus da crença cabe ao crente.
Desde que os conspiradores boçais se desmoralizaram ao profetizar o fim do mundo antes do ano 2000 eles mudaram de tática: duvidam, atacam e fazem pouco dos cientistas, para perplexidade dos estudantes, inocentes úteis que veneram e pesquisam o trabalho dos sábios.
Mas a ciência sob ataque é fonte de sabedoria, mesmo que os conspiradores anticiência, como ocorre em geral com os crentes do deus Boçal, acreditem em ilusões que não se sustentam em fatos.
Mentiras e verdades
Em defesa dos conspiradores boçais, entretanto, cabe declarar, aqui e agora, que os cientistas merecem ser negados antes que o galo cante três vezes nas várias realidades paralelas dos universos duplos espelhados. Vocês têm feito por merecer, homens de ciência!
As redes sociais são ocupadas por besteiras, irrelevâncias, fake news e teorias da conspiração. Diz-se que ao redor de 90% ou mais dos conteúdos trocados via compartilhamento entram nessas categorias, o que faz de cada leitor de mensagens e viciado em leituras de redes um otário em potencial.
Enfim, cada qual acredita nas mentiras que mais batem com suas próprias verdades.
O sábio Umberto Eco, que devorou e escreveu livros aos montes, proclamou que "as redes sociais dão o direito de falar a uma legião de idiotas que antes só falavam em um bar depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a humanidade. Então, eram rapidamente silenciados, mas, agora, têm o mesmo direito de falar que um prêmio Nobel. É a invasão dos imbecis" (jornal La Stampa).
Como cada qual se delicia com as mentiras que batem com suas próprias verdades, as maluquices conspiratórias são apenas um jeito como qualquer outro de passar vergonha.
Explodindo o Big Bang
A certeza de que mais de 90% dos conteúdos das redes sociais são boçalidades é disseminada pelos cientistas. Mas, pelo amor de Boçal, será que eles sempre estão certos?
Todos os grandes sábios do passado alimentaram concepções científicas erradas. A de que o homem é o“rei dos animais”, por exemplo. Enquanto ele bate no peito inflado de orgulho e sem máscara, aspira um vírus invisível aos olhos que logo o derruba mortalmente.
Pesquisa do Pew RC aponta que 36% dos entrevistados no Brasil declararam dar pouco ou nenhum crédito a cientistas. Nos EUA, os descrentes foram 21%. Na Alemanha, 13%.
A cada dia, aliás, a própria ciência comprova haver mais ignorância no universo que sabedoria. Se acreditasse em tudo que os velhos cientistas disseram, Neil Turok, do Perimeter Institute for Theoretical Physics (Canadá), aceitaria sem chiar a teoria mais aceita de que o universo começou com o Big Bang, explosão ocorrida há 13,8 bilhões de anos.
Turok acha que o Big Bang não bate com um princípio de simetria da mecânica, a menos que o BB tenha dado origem também a um universo espelho, regido pelas leis da física, mas ao contrário.
Aí já são dois universos pelo preço explosivo de um. Se nem isso está resolvido, como desprezar imbecis e bocas-sujas por terem o mesmo direito de falar que um educado e gentil Prêmio Nobel? Democracia ainda que tardia!
Horrível, às vezes. Democrático, sempre
Não deixa de ser boçalidade condenar as redes e seu pertinaz anticientificismo, já que os anticientíficos são culpados úteis. Pôr em xeque o conhecimento científico é uma obrigação da ciência. Desmoralizar certezas é o eppur si muove de Galileu!
Quem mais desmoraliza cientistas não são os boçais anticiência. São os cientistas. A própria ciência desmoralizou todos os antigos sábios, talvez restando ainda Einstein e alguns paradoxos não resolvidos.
É certo que nas redes há muita anticiência (e muita boçalidade, pois o direito de professar a fé boçalizante é inalienável), mas que mal há em ler nas redes as asneiras ditas/digitadas por um líder politico se assim ele se desmoraliza por si mesmo?
No passado os líderes eram respeitáveis porque se limitavam a ler no rádio discursos escritos por seus ghost writers. Se já tivessem o Twitter à mão você sentiria pena das idiotices em que acreditavam.
Sejamos justos: os negacionistas são boçais desprezíveis ou elementos úteis, ao nos fazer estudar melhor a dialética? Duvidar e descartar o que não interessa são instrumentos científicos por excelência. Quando os negacionistas negam, duvidam. Nada mais científico, pois.
Alceu A. Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br