Vacina no braço e comida no prato
Michele Caputo
Há duas pandemias que estamos enfrentando no Brasil. Uma que não sai do noticiário diário que é a crise sanitária do coronavírus, sem precedentes na história contemporânea. A outra, pouco a pouco, está sendo discutida no andar de cima que é a miséria, representada pela fome. Sim, há muita gente sem comer neste país. Nada menos que 85 milhões de brasileiros enfrentam em algum grau a insegurança alimentar.
A Covid se enfrenta com a ciência, o empenho fantástico dos pesquisadores e profissionais de saúde e a disciplina, que deve se incorporar no nosso cotidiano, através de medidas simples como a higiene das mãos e o uso de máscara. Enfrentamos ainda os negacionistas, os terraplanistas e seus áulicos que desinformam a população e comprometem a própria vida, a vida de um ente querido, de um amigo, de um vizinho ou de um colega de trabalho.
É difícil, aliás muito difícil, não encontrar alguém que não teve um parente ou conhecido impactado de forma média ou aguda pela Covid. De um internamento em um hospital ou unidade de saúde, se recuperando das sequelas da doença, ou num quadro pior que ceifa e tira de nós o bem mais precioso da humanidade. As redes sociais e outros meios de comunicação se tornaram um obituário triste e repetitivo.
Para vencer essa primeira pandemia é necessário a vacinação em massa, que ainda patina e evidencia a negligência e a omissão do poder central. Isso sem falar das alternativas terapêuticas estapafúrdias que incluem o uso de medicamentos sem eficácia e comprovação científica até introdução retal de ozônio.
Enquanto a vacina não chega ao nosso braço, o trabalhador segue exposto ao risco no transporte coletivo lotado ou em atividades de alto potencial de transmissibilidade.
A esperança vem de notícias auspiciosas como as das universidades do Paraná e de Minas Gerais que avançam nas pesquisas para consagrar um imunizante nacional. Aponto ainda a produção da Butanvac, outra vacina nacional, que começou a ser produzida pelo Instituto Butantan em São Paulo. O laboratório Bio-Maguinhos, da Fiocruz no Rio de Janeiro, também segue, felizmente, o mesmo caminho.
Agora, não há como entender a negativa da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância em Saúde) para importação da vacina russa, a Sputnik V. É muito estranha esta posição da Anvisa e não há como explicar, dessa forma, porque 50 países, como a Argentina, México e a própria Rússia já vacinaram milhões de cidadãos.
Estados, regiões (como o Nordeste) e municípios, que se organizaram até através de consórcios, tiveram que interromper o processo de importação e procurar outros fornecedores de outros países. Até o Paraná que estava com a expectativa da compra da Sputnik, agora se vê com um novo desafio para agilizar a compra dos imunizantes.
O que está acontecendo? Questões políticas? O que está acontecendo no governo federal? Soma-se a isso o adiamento e a redefinição, sempre para baixo ou para menos, na entrega das vacinas aos estados. As doses que esperavam para maio chegarão, agora, em setembro. É um quadro tão terrível que dificilmente, apesar de todos saberem, vai chegar aos responsáveis pela lambança.
A outra pandemia, meus caros, está sendo enfrentada pela solidariedade de uma parte da população, setores produtivos, sociedade civil organizada e até pelos gestores públicos. Mas precisa de mais, muito mais. Temos muitos exemplos, de adolescentes que transformam suas festas de aniversários em doação de alimentos aos mais necessitados, de grupos de pessoas que se organizam para servir um café da manhã, uma marmita no almoço e uma refeição quente à noite.
Sem falar na vacina solidária, uma campanha de prefeituras, nos postos de vacinação, que incentiva a doação de alimentos não perecíveis por parte de quem está tendo o privilégio de ser vacinado.
Igrejas, entidades, empresas e prefeituras oferecem vales emergenciais, doam cestas básicas e alimentos. Curitiba, Cascavel, Maringá, Londrina e Ponta Grossa oferecem de uma a duas refeições por dia nos restaurantes populares. Há campanhas nas redes sociais de arrecadação de alimentos, há possibilidade dos municípios firmarem convênios com restaurantes e cantinas para fornecimento de marmitas.
Isso se soma aos auxílios emergenciais dos governos estadual e federal às famílias impactadas pela pandemia.
Mas ainda é necessário mais, muito mais. Precisamos de uma campanha nacional nos moldes da que já foi organizada por Betinho (Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria). Senão vamos passar a viver a máxima já escrita pelo escritor Josué de Castro:"metade da humanidade não come; e a outra metade não dorme, com medo da que não come".
Se não fizermos mais do que esperam de nós, o povo brasileiro vai continuar ainda sem vacina no braço e sem comida no prato.*
Michele Caputo é farmacêutico, deputado estadual pelo PSDB e ex-secretário de Saúde de Curitiba e do Paraná